Memória de elefante - Antonio Lobo Antunes - Livro em portugués
MEMÓRIA DE ELEFANTE
António Lobo Antunes
Para a Zezinha e para a Joana
as large as life and twice as natural.
CARROLL,Through the looking-glass
Há sempre uma abébia para dar de frosque,
por isso aguentem-se à bronca.
Sentença do Dédé ao evadir-se da prisão.
Memória de Elefante
O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância
acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada,
pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos
de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se
fosse voar: de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquele Júpiter de
sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no
sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante:
A quotazinha da Sociedade, senhor doutor.
Puta que pariu os psiquiatras organizados em esquadra de polícia, pensava
sempre ao procurar os cem escudos na complicação da carteira, puta que pariu o
Grande Oriente da Psichiatria, dos etiquetadores pomposos do sofrimento, dos
chonés da única sórdida forma de maluquice que consiste em vigiar e perseguir a
liberdade da loucura alheia defendidos pelo Código Penal dos tratados, puta que
pariu a Arte Da Catalogação Da Angústia, puta que me pariu a mim, rematava
ele ao embolsar o rectângulo impresso, que colaboro, pagando, com isto, em
lugar de espalhar bombas nos baldes dos pensos e nas gavetas das secretárias dos
médicos para fazer explodir, num cogumelo atómico triunfante, cento e vinte e
cinco anos de idiotia pinamaniquesca. O olhar intensamente azul do porteirocobrador,
que assistia sem entender a uma maré-baixa de revolta que o
transcendia, embrulhava-o num halo de anjo medieval apaziguante: um dos
projectos secretos do médico consistia em saltar a pés juntos para dentro dos
quadros de Cimabue e dissolver-se nos ocres desbotados de uma época ainda não
inquinada pelas mesas de fórmica e pelas pagelas da Sãozinha: lançar mergulhos
rasantes de perdiz, mascarado de serafim nédio, pelos joelhos de virgens
estranhamente idênticas às mulheres de Delvaux, manequins de espanto nu em
gares que ninguém habita. Um resto agonizante de fúria veio girar-lhe ao ralo da
boca:
Senhor Morgado, pela saúde dos seus e meus tomates não me lixe mais com
o caralho das quotas durante um ano e diga à Sociedade de Neurologia e
Psiquiatria e amanuenses do cerebelo afins que metam o meu dinheiro
enroladinho e vaselinado no sítio que eles sabem, obrigadíssimos e tenho dito
ámen.
O porteiro-cobrador escutava-o respeitosamente (este gajo deve ter sido na
tropa o pide favorito do sargento, descobriu o médico) reinventando as leis de
Mendel à medida do seu intelecto de dois quartos com serventia de cozinha:
Topa-se logo que o senhor doutor é filho do senhor doutor: uma ocasião o
paizinho amandou o fiscal fora do laboratório pelas orelhas.
De azimute voltado para o livro do ponto e um seio de Delvaux a esfumar-se no
canto da ideia, o psiquiatra apercebeu-se de súbito da admiração que as proezas
bélicas do progenitor haviam disseminado, por aqui e por ali, na saudade de
certas barrigas grisalhas. Rapazes, chamava-lhes o pai. Quando vinte anos atrás o
irmão e ele se iniciaram no hóquei do Futebol Benfica, o treinador, que partilhara
com o pai Aljubarrotas áureas de pauladas no toutiço, retirou o apito da boca
para os avisar com gravidade:
Espero que saiam ao João, que quando tocava a Santos era lixado para a
porrada. Em 35, no rinque da Gomes Pereira, foram três da Académica da
Amadora para São José.
E acrescentou baixinho com a doçura de uma recordação grata:
Fractura de crânio, no tom de voz em que se revelam segredos íntimos de
paixão adolescente, conservada na gaveta da memória que se dedica às
inutilidades de pacotilha que dão sentido a um passado.
Pertenço irremediavelmente à classe dos mansos refugiados em tábuas,
reflectiu ele ao assinar o nome no livro que o contínuo lhe estendia, velho calvo
habitado pela paixão esquisita da apicultura, escafandrista de rede encalhado
num recife de insectos, à classe dos mansos perdidos refugiados em tábuas a
sonharem com o curro do útero da mãe, único espaço possível onde ancorar as
taquicárdias da angústia. E sentiu-se como expulso e longe de uma casa cujo
endereço esquecera, porque conversar com a surdez da mãe afigurava-se-lhe
mais inútil do que socar uma porta cerrada para um quarto vazio, apesar dos
esforços do sonotone através do qual ela mantinha com o mundo exterior um
contacto distorcido e confuso feito de ecos de gritos e de enormes gestos
explicativos de palhaço pobre. Para entrar em comunicação com esse ovo de
silêncio o filho iniciava uma espécie de batuque zulu ritmado de guinchos, saltava
na carpete a deformar-se em caretas de borracha, batia palmas, grunhia,
acabava por afundar-se extenuado num sofá gordo como um diabético avesso à
dieta, e era então que movida por um tropismo vegetal de girassol a mãe erguia o
queixo inocente do tricot e perguntava:
Hã?, de agulhas suspensas sobre o novelo à laia de um chinês parando os
pauzinhos diante do almoço interrompido.
Classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos
perdidos, repetiam os degraus à medida que os subia e a enfermaria se
aproximava dele tal um urinol de estação de um comboio em marcha, chefiada
por uma vaca sagrada que a fim de descompor as subordinadas retirava a
dentadura postiça da boca, como quem arregaça as mangas, para aumentar a
eficácia dos insultos. A imagem das filhas, visitadas aos domingos numa quase
furtividade de licença de caserna, atravessou-lhe obliquamente a cabeça num
desses feixes de luz poeirenta que os postigos de sótão transformam numa
espécie triste de alegria. Costumava levá-las ao circo na tentativa de lhes
comunicar a sua admiração pelas contorcionistas, entrelaçadas em si próprias
como iniciais em ângulo de guardanapo e detentoras da beleza impalpável
comum aos hálitos de gaze que anunciam nos aeroportos a partida dos aviões e às
meninas de saias de folhos e botas brancas a desenharem elipses às arrecuas no
rinque de patinagem do Jardim Zoológico, e desiludia-o como uma traição o
estranho interesse delas pelas damas equívocas, de cabelos loiros com raízes
grisalhas, que amestravam cães melancolicamente obedientes e uniformemente
horrorosos, ou pelo rapazinho de seis anos a rasgar listas telefónicas no riso fácil
dos guarda-costas em botão, futuro Mozart do cassetete. Os crânios daqueles dois
seres minúsculos que usavam o seu apelido e lhe prolongavam a arquitectura das
feições surgiam-lhe tão misteriosamente opacos como os problemas de torneiras
da escola, e espantava-o que sob cabelos que possuíam o mesmo odor dos seus
grelassem ideias diversas das que penosamente armazenara em anos e anos de
hesitações e dúvidas. Surpreendia-se que para além de tiques e de gestos a
natureza se não houvesse empenhado em transmitir-lhes também, a título de
bónus, os poemas de Eliot que conhecia de cor, a silhueta de Alves Barbosa a
pedalar nas Penhas da Saúde, e a aprendizagem já feita do sofrimento. E por
detrás dos sorrisos delas distinguia alarmado a sombra das inquietações futuras,
como no seu próprio rosto percebia, olhando-o bem, a presença da morte na
barba matinal.
Procurou na argola das chaves a que abria a porta da enfermaria (o meu lado
de governanta, murmurou, a minha faceta de despenseiro de navios inventados
disputando aos ratos as bolachas-maria do porão), e entrou num corredor
comprido balizado por espessas ombreiras de jazigo atrás das quais se estendiam,
em colchas duvidosas, mulheres que o excesso de remédios transformara em
sonâmbulas infantas defuntas, convulsionadas pelos Escoriais dos seus fantasmas.
A enfermeira-chefe, no seu gabinete de Dr. Mabuse, recolocava a dentadura
postiça nas gengivas com a majestade de Napoleão coroando-se a si mesmo: os
molares ao entrechocarem-se produziam ruídos baços de castanholas de plástico,
como se as suas articulações fossem uma criação mecânica para edificação
cultural de estudantes do liceu ou dos frequentadores do Castelo Fantasma da
Feira Popular, onde o cheiro das sardinhas assadas se combina subtilmente com
os gemidos de cólica dos carrosséis. Um crepúsculo pálido boiava
permanentemente no corredor e os vultos adquiriam, aclarados pelas lâmpadas
desconjuntadas do tecto, a textura de vertebrados gasosos do Deus rive-gauche
do catecismo, que ele imaginava sempre a evadir-se da colónia penal dos
mandamentos para passear livre, nas noites da cidade, a cabeleira bíblica de um
Ginsberg eterno. Algumas velhas, que as castanholas bocais do Napoleão haviam
despertado de letargias de pedra, chinelavam ao acaso de cadeira em cadeira
idênticas a pássaros sonolentos em busca do arbusto onde ancorar: o médico
tentava em vão decifrar nas espirais das suas rugas, que lhe lembravam as
misteriosas redes de fendas dos quadros de Vermeer, juventudes de bigodes
encerados, coretos e procissões, alimentadas culturalmente por Gervásio Lobato,
pelos conselhos dos confessores e pelos dramas de gelatina do dr. Júlio Dantas,
unindo fadistas e cardeais em matrimónios rimados. As octogenárias pousavam
nele os olhos descoloridos de vidro, ocos como aquários sem peixes, onde o limo
ténue de uma ideia se condensava a custo na água turva de recordações
brumosas. A enfermeira-chefe, a cintilar os incisivos de saldo, pastoreava aquele
rebanho artrítico enxotando-o a mãos ambas para uma saleta em que o televisor
se avariara num hara-kiri solidário com as cadeiras coxas encostadas às paredes
e o aparelho de rádio que emitia, com sobressaltos felizmente raros, longos uivos
fosforescentes de cachorro perdido na noite de uma quinta. As velhas
tranquilizavam-se a pouco e pouco como galinhas salvas da canja na capoeira de
novo em sossego, mastigando a pastilha elástica das bochechas em ruminações
prolixas sob uma oleografia piedosa na qual a humidade devorara os biscoitos das
auréolas dos santos, vagabundos antecipados de um katmandu celeste. A sala de
consultas compunha-se de um armário em ruína roubado ao sótão de um ferrovelho
desiludido, de dois ou três maples precários com o forro a surgir dos
rasgões dos assentos como cabelos por buracos de boina, de uma marquesa
contemporânea da época heróica e tísica do dr. Sousa Martins, e de uma
secretária que abrigava na cavidade destinada às pernas um cesto de papéis
enorme, parturiente carunchosa afligida por um feto excessivo. Em cima de um
naperon enodoado uma rosa de papel cravava-se na sua jarra de plástico como a
bandeira remota do capitão Scott nos gelos do pólo Sul. Uma enfermeira
parecida com a D. Maria II das notas de banco em versão Campo de Ourique
comboiou na direcção do psiquiatra uma mulher entrada na véspera e que ele
não observara ainda, ziguezagueando de injecções, de camisa a flutuar em torno
do corpo como o espectro de Charlotte Brontë vogando no escuro de uma casa
antiga. O médico leu no boletim de internamento « esquizofrenia paranóide;
tentativa de suicídio» , folheou rapidamente a medicação do Serviço de Urgência
e procurou um bloco na gaveta enquanto um sol súbito aderia, jovial, aos
caixilhos. No pátio em baixo, entre os edifícios da 1.a e 6.a enfermarias de
homens, um negro de calças pelos joelhos masturbava-se freneticamente
encostado a uma árvore, espiado com gáudio por um grupo de serventes.
Adiante, perto da 8.a, dois sujeitos de bata branca erguiam o capot de um Toy ota
para lhe examinar o funcionamento das vísceras orientais. Estes amarelos
sacanas começaram pelas gravatas ambulantes, já nos colonizam de rádios e
automóveis e qualquer dia fazem da gente os kamikazes de Pearl Harbour
futuras; marralhos para dar com os cornos nos Jerónimos no verão, a dizer
banzai, quando casamentos e baptizados se sucedem em ritmo trepidante de
metralhadora mística. A doente (quem entre aqui para dar pastilhas, tomar
pastilhas ou visitar nazarenamente as vítimas das pastilhas é doente, sentenciou o
psiquiatra no interior de si mesmo) apontou-lhe ao nariz as órbitas enevoadas de
comprimidos e articulou numa determinação tenaz:
Seu cabrão.
A D. Maria II encolheu os ombros a fim de bolear as arestas do insulto:
Está nisto desde que veio. Se assistisse à cena que ela armou para aí com a
família o senhor doutor até se benzia. De curtas e compridas tem-nos chamado
de tudo.
O médico escreveu no bloco: cabrão, curtas, compridas, riscou um traço por
baixo como se preparasse uma soma e acrescentou em maiúsculas Caralho. A
enfermeira, que lhe espreitava sobre o ombro, recuou um passo: educação
católica à prova de bala, supôs ele medindo-a. Educação católica à prova de bala
e virgem por tradição familiar: a mãe devia estar rezando a Santa Maria Goretti
enquanto a fazia.
A Charlotte Brontë a cambalear à beira do KO químico voltou para a janela
uma unha onde o verniz estalava:
Alguma vez viu o sol lá fora, seu cabrão?
O psiquiatra gatafunhou Caralho + Cabrão = Grande Foda, rasgou a página e
entregou-a à enfermeira:
Percebe?, perguntou ele. Aprendi isto com a minha primeira mestra de
lavores, diga-se à puridade e de passagem que o melhor clitóris de Lisboa.
A mulher empertigou-se de indignação respeitosa:
O senhor doutor anda muito bem disposto mas eu tenho outros médicos para
atender.
O homem lançou-lhe, num gesto largo, a bênção urbi et orbi que seguira uma
vez pela televisão:
Ide em paz, soletrou ele com sotaque italiano. E não percais a minha
mensagem papal sem a dar a ler aos bispos meus dilectos irmãos. Sursum corda
e Deo gratias ou vice-versa.
Fechou cuidadosamente a porta atrás dela e voltou a sentar-se à secretária. A
Charlotte Brontë mediu-o de pálpebra crítica:
Ainda não decidi se você é um cabrão simpático ou antipático mas pelo sim
pelo não cona da mãe.
Cona da mãe, meditou ele, que exclamação adequada. Moveu-a dentro da
boca com a língua como um caramelo, sentiu-lhe a cor e o gosto morno, recuou
no tempo até a encontrar a lápis nos sanitários do liceu entre desenhos
explicativos, convites e quadras e a recordação enjoada dos cigarros clandestinos
comprados avulso na Papelaria Académica a uma deusa grega que varria o
balcão com o excesso dos seios, demorando nele pupilas vazias de estátua. Uma
senhora magrinha com ar subalterno apanhava malhas num canto sombrio
anunciada por letreiro a escantilhão na montra (Malhas Com Perfeissão e
Rapidês) tal como os cartazes pregados às grades do Jardim Zoológico avisam os
nomes em latim dos animais. Cheirava persistentemente a lápis viarco e a
humidade e as damas das redondezas com as compras da praça embrulhadas em
papel de jornal vinham queixar-se às mamas helénicas, em murmúrios
desolados, das suas misérias conjugais povoadas de manicuras perversas e de
francesas de cabaré que lhes seduziam os maridos ao dobrarem em quatro, ao
ritmo afrodisíaco da Valsa da Meia-Noite, a nudez experiente dos quadris.
O negro que se masturbava no pátio iniciou para edificação dos serventes
contorções orgásticas desordenadas de mangueira à solta. Larroseur arrosé.
Incansável, a Charlotte Brontë voltou à carga:
Oiça lá seu artolas, conhece a dona disto?
E depois de uma pausa destinada a deixar alastrar no médico o pânico escolar
da ignorância assentou uma palmada proprietária na barriga:
Sou eu.
Os olhos que desdenhavam o psiquiatra raiaram-se de súbito de tracinhos
métricos de duplo-decímetro:
Não sei se o despeço ou se o nomeio director: é consoante.
É consoante?
É consoante a opinião do meu marido domador de leões de bronze marquês
de Pombal Sebastião de Melo. Vendemos bichos amestrados a estátuas,
reformados barbudos de pedra para repuxos, soldados desconhecidos a domicílio.
O homem cessara de a ouvir: o corpo dele mantinha a curva obsequiosa de
ponto de interrogação na aparência atento de terceiro oficial a despacho, a testa,
para onde todos os acidentes geográficos do seu rosto convergiam como
passantes para um epiléptico a lagartixar na calçada, amarrotava-se de asséptico
interesse profissional, a esferográfica aguardava a ordem estúpida de um
diagnóstico definitivo, mas no palco dos miolos sucediam-se as imagens
vertiginosas e confusas em que o sono se prolonga manhã fora, combatido pelo
sabor do dentífrico na língua e a falsa frescura publicitária da loção de barbear,
sinais inequívocos de se esbracejar já, instintivamente, na realidade do
quotidiano, sem espaço para a cambalhota de um capricho: os seus projectos
imaginários de Zorro dissolviam-se sempre, antes de começarem, no Pinóquio
melancólico que o habitava, a exibir a hesitação do sorriso pintado sob a linha
resignada da sua boca autêntica. O porteiro que todos os dias o acordava a golpes
teimosos de campainha afigurava-se-lhe um são bernardo de barril ao pescoço a
salvá-lo in extremis do nevão de um pesadelo. E a água do chuveiro, ao descerlhe
pelos ombros, levava-lhe da pele o suor de angústia de uma desesperança
tenaz.
Desde que se separara da mulher cinco meses antes que o médico morava
sozinho num apartamento decorado de um colchão e de um despertador mudo
imobilizado de nascença nas sete da tarde, malformação congénita do seu agrado
por detestar os relógios em cujo interior de metal palpita a mola taquicárdica de
um coraçãozinho ansioso. A varanda pulava directamente para o Atlântico por
sobre as roletas do casino, em que se multiplicavam americanas idosas cansadas
de fotografarem túmulos barrocos de reis, exibindo as sardas esqueléticas dos
decotes numa arrepiante audácia de quakers renegadas. Estendido nos lençóis
sem descer a persiana o psiquiatra sentia os pés tocarem o escuro do mar,
diferente do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita. As fábricas do
Barreiro introduziam no lilás da aurora o fumo musculoso das chaminés distantes.
Gaivotas sem bússola esbarravam, estupefactas, com os pardais dos plátanos e as
andorinhas de loiça das fachadas. Uma garrafa de aguardente iluminava a
cozinha vazia da lâmpada votiva de uma felicidade de cirrose. De roupa
espalhada no soalho o médico aprendia que a solidão possui o gosto azedo do
álcool sem amigos, bebido pelo gargalo, encostado ao zinco do lava-loiças. E
acabava por concluir, ao repor a rolha com uma palmada, assemelhar-se ao
camelo recheando a sua bossa antes da travessia de uma longa paisagem de
dunas, que teria preferido nunca conhecer.
Era em momentos desses, quando a vida se torna obsoleta e frágil como os
bibelots que as tias-avós distribuem por saletas impregnadas do odor misto de
urina de gato e de xarope reconstituinte, e a partir dos quais refazem a minúscula
monumentalidade do passado familiar à maneira de Cuvier criando pavorosos
dinossauros de lascas insignificantes de falangetas, que a recordação das filhas
lhe tornava à memória na insistência de um estribilho de que se não lograva
desembaraçar, agarrado a ele como um adesivo ao dedo, e lhe produzia no
ventre o tumulto intestinal de guinadas de tripas em que a saudade encontra o
escape esquisito de uma mensagem de gases. As filhas e o remorso de se ter
escapado uma noite, de maleta na mão, ao descer as escadas da casa que
durante tanto tempo habitara, tomando consciência degrau a degrau de que
abandonava muito mais do que uma mulher, duas crianças e uma complicada
teia de sentimentos tempestuosos mas agradáveis, pacientemente segregados. O
divórcio substitui na era de hoje o rito iniciático da primeira comunhão: a certeza
de amanhecer no dia seguinte sem a cumplicidade das torradas do pequenoalmoço
partilhado (para ti o miolo para mim a côdea) aterrorizou-o no vestíbulo.
Os olhos desolados da mulher perseguiam-no pelos degraus abaixo: afastavam-se
um do outro como se haviam aproximado, treze anos antes, num desses agostos
de praia feitos de aspirações confusas e de beijos aflitos, no mesmo turbilhonante
e ardente refluxo de maré. O corpo dela permanecia jovem e leve apesar dos
partos, e o rosto mantinha intactos a pureza dos malares e o nariz perfeito de uma
adolescência triunfal: junto dessa beleza esguia de Giacometti maquilhado
achava-se sempre desajeitado e tosco no seu invólucro que começava a
amarelecer de um outono sem graça. Havia alturas em que lhe parecia injusto
tocá-la, como se o contacto dos seus dedos despertasse nela um sofrimento sem
razão. E perdia-se entre os seus joelhos, afogado de amor, a gaguejar as palavras
de ternura de um dialecto inventado.
Quando é que eu me fodi?, perguntou-se o psiquiatra enquanto a Charlotte
Brontë prosseguia impassível o seu discurso de Lewis Carroll grandioso. Como
quem enfia sem pensar a mão no bolso à procura da gorjeta de uma resposta
mergulhou o braço na gaveta da infância, bricabraque inesgotável de surpresas,
tema sobre o qual a sua existência posterior decalcava variações de uma
monotonia baça, e trouxe à tona ao acaso, nítido na concha da palma, ele miúdo
acocorado no bacio diante do espelho do guarda-fato em que as mangas dos
casacos pendurados de perfil como as pinturas egípcias proliferavam na
abundância de lianas moles dos príncipes de gales do seu pai. Um puto loiro que
alternadamente se espreme e observa, pensou concedendo um sos laio aos anos
devolutos, eis um razoável resumo dos capítulos anteriores: costumavam deixá-lo
assim horas seguidas na sua chávena de Sèvres de esmalte onde o chichi
pianolava escalas tímidas de harpa, a conversar consigo mesmo as quatro ou
cinco palavras de um vocabulário monossilábico completado de onomatopeias e
guinchos de saguim abandonado, ao mesmo tempo que no andar de baixo a
tromba de papa-formigas do aspirador sugava carnivoramente as franjas
comestíveis das carpetes manejada pela mulher do caseiro a quem o incómodo
das pedras da vesícula acentuava o aspecto outonal. Quando é que eu me fodi?,
inquiriu o médico ao garoto que a pouco e pouco se dissolvia com a sua gaguez e
o seu espelho para ceder lugar a um adolescente tímido, de dedos manchados de
tinta, encostado a uma esquina propícia a fim de assistir à passagem indiferente e
risonha das raparigas do liceu cujos soquetes o abalavam de desejos confusos
mas veementes afogados em chás de limão solitários na pastelaria vizinha,
ruminando num caderno sonetos à Bocage policiados pela censura estrita do
catecismo de bons costumes das tias. Entre esses dois estádios de larva incipiente
plantavam-se, como numa galeria de bustos de gesso, manhãs de domingo em
museus desertos balizados de retratos a óleo de homens feios e de escarradores
fedorentos onde as tosses e as vozes ecoavam como em garagens à noite,
chuvosos verões de termas imersos em nevoeiros irreais de que nasciam a custo
silhuetas de eucaliptos feridos, e sobretudo as árias de ópera da rádio escutadas
da sua cama de garoto, duetos de insultos agudos entre um soprano de pulmão de
varina e um tenor que incapaz de lhe fazer frente acabava por a enforcar à
traição no nó corredio de um dó de peito interminável, conferindo ao medo do
escuro a dimensão do Capuchinho Vermelho escrito por um lápis de violoncelos.
As pessoas crescidas possuíam nessa altura uma autoridade indesmentida
avalizada pelos seus cigarros e pelos seus achaques, inquietantes damas e valetes
de um baralho terrível cujos lugares na mesa se reconheciam através da
localização das embalagens de remédios: separado delas pela subtil manobra
política de me darem banho a mim enquanto eu nunca os via nus a eles, o
psiquiatra conformava-se com o papel de quase figurante que lhe distribuíam,
sentado no chão da sala às voltas com os jogos de cubos que se consentem como
divertimento dos vassalos, ansiando pela gripe providencial que desviasse do
jornal para si a atenção cósmica daqueles titãs, transformada de súbito num
desvelo de termómetros e de injecções. O pai, precedido pelo odor de brilhantina
e de tabaco de cachimbo cuja combinação representou para ele durante muitos
anos o símbolo mágico de uma virilidade segura, entrava no quarto de seringa
em riste e depois de lhe arrefecer as nádegas com o pincel de barba húmido do
algodão introduzia-lhe na carne uma espécie de dor líquida que solidificava num
seixo lancinante: recompensavam-no com os frasquinhos de penicilina vazios de
que se evolava um rastro de perfume terapêutico, tal como dos sótãos fechados
surde, pelas frinchas da porta, o aroma de bolor e alfazema dos passados
defuntos.
Mas ele, ele, Ele quando é que se lixara? Folheou rapidamente a meninice
desde o setembro remoto do fórceps que o expulsara da paz de aquário uterina à
laia de quem arranca um dente são da comodidade da gengiva, demorou-se nos
longos meses da Beira iluminados pelo roupão de ramagens da avó, crepúsculos
na varanda sobre a serra a escutar o lume brando da febre monótona dos ralos,
campos em declive marcados pelas linhas dos caminhos-de-ferro idênticas a
veias salientes em costas de mão, saltou as aborrecidas páginas sem diálogo de
algumas mortes de primas idosas que o reumático empenara de vénias de
ferradura, tocando com os fiapos dos cabelos brancos os tofos de gota dos
joelhos, e preparava-se para explorar de lupa psicanalítica em punho as
angustiosas vicissitudes da sua estreia sexual entre uma garrafa de permanganato
e uma colcha duvidosa que conservava viva, junto da almofada, a pegada de y eti
da sola do cliente anterior, demasiado apressado para se preocupar com o
detalhe insignificante dos sapatos ou suficientemente púdico para manter as
peúgas naquele altar de blenorragias a taxímetro, quando a Charlotte Brontë o
despertou para a realidade presente da manhã hospitalar sacudindo-lhe a mãos
ambas as dobras do casaco ao mesmo tempo que entrelaçava o grosso fio de lã
libertária da Marselhesa no crochet bairrista do fado Alexandrino com as agulhas
destras de um contralto inesperado. A boca dela, redonda como argola de
guardanapo, exibia ao fundo a lágrima trémula da úvula balouçando como um
pêndulo ao ritmo dos seus berros, as pálpebras tombavam sobre as pupilas
perspicazes à laia de cortinas de teatro que tivessem descido por engano a meio
de um Brecht sabiamente irónico. As cordas de ny lon dos tendões da nuca
esticavam-se de esforço sob a pele e o médico pensou que era como se Fellini
houvesse invadido de súbito um desses belos dramas paralisados de Tchekov em
que gaivotas gasosas definham de dor contida atrás da chamazinha vacilante de
um sorriso, e que para lá da porta fechada as empregadas se deviam principiar a
agitar de inquietações solícitas, imaginando-o enforcado no elástico preto de uma
liga. A Charlotte Brontë, saciada, empoleirou-se no trono da marquesa como
quem regressa de motu proprio ao orgulho intransigente do exílio.
Seu grandessíssimo cabrão de merda, articulou ela em tom distraído de
quinquagenária que conversa com as amigas contando as malhas do tricot.
O psiquiatra apressou-se a aproveitar essa favorável disposição de humor para
se escapar à sorrelfa para a trincheira da sala de pensos. Uma enfermeira que
ele estimava e cuja amizade tranquila apaziguara mais de uma vez os impulsos
destrutivos das suas fúrias de maremoto preparava pacificamente as medicações
do almoço vertendo comprimidos idênticos a smarties num tabuleiro repleto de
copinhos de plástico.
Deolinda, informou-a ele, estou a tocar no fundo.
Ela abanou o rosto em bico de tartaruga bondosa:
Nunca mais tem fim essa descida?
O médico ergueu os botões de punho ao tecto de caliça descamada numa
patética imploração bíblica, na esperança de que a teatralidade voluntária
ocultasse parte do seu sofrimento verdadeiro:
Você encontra-se (observe-me bem) por felicidade sua e infelicidade minha
defronte do maior espeleólogo da depressão: oito mil metros de profundidade
oceânica da tristeza, negrume de águas gelatinosas sem vida salvo um ou outro
repugnante monstro sublunar de antenas, e tudo isto sem batiscafo, sem
escafandro, sem oxigénio, o que significa, obviamente, que agonizo.
Porque é que não volta para casa?, perguntou a enfermeira que possuía o
sentimento prático da existência e a certeza inabalável de que ainda que a linha
recta não seja forçosamente o caminho mais curto entre dois pontos é pelo
menos o aconselhável à deslabirintação dos espíritos tortuosos.
O psiquiatra pegou no telefone e pediu para ligarem ao hospital onde um amigo
trabalhava: é o momento de me agarrar a qualquer coisa, decidiu ele.
Porque não sei, porque não posso, porque não quero, porque perdi a chave,
declarou à enfermeira sabendo perfeitamente que mentia.
Eu minto e ela sabe que eu minto e que eu sei que ela sabe que eu minto e
aceita isso sem zanga nem sarcasmo, verificou o médico. De longe em longe
cabe-nos a sorte de topar com uma pessoa assim, que gosta de nós não apesar
dos nossos defeitos mas com eles, num amor simultaneamente desapiedado e
fraternal, pureza de cristal de rocha, aurora de maio, vermelho de Velázquez.
Olhe, disse o médico tapando o bocal com a manga, nem calcula quanto lhe
agradeço você existir.
Nesse instante a voz do amigo chegou pequenina ao telefone, formulou com
cuidado:
Está? (E ele fantasiou uma pinça delicada colhendo suavemente qualquer
coisa de frágil e precioso.)
Sou eu, respondeu rápido porque sentiu que principiava a emocionar-se. Estou
a tocar o fundo, o fundo do fundo, e precisava de ti.
No silêncio do telefone adivinhou o amigo a desenrolar mentalmente na cabeça
o horário do seu dia:
Posso descombinar um almoço, anunciou por fim, íamos juntos a uma dessas
manjedouras que tu frequentas e durante o hamburger descarregavas a alma.
À uma nas Galerias, resolveu o psiquiatra fitando a enfermeira que saía com
o tabuleiro repleto de grãozinhos vermelhos, amarelos e azuis a estremecerem
nos receptáculos de plástico. E obrigado.
À uma, confirmou o amigo.
O médico pousou o telefone com a velocidade suficiente para não ouvir o som
do aparelho a desligar-se, inútil ruído penoso que lhe recordava discussões azedas
alimentadas pelo despeito e pelo ciúme. Compunha a gravata que a Charlotte
Brontë desarrumara, em busca da bissectriz dos colarinhos, quando o Napoleão
da dentadura postiça, chocalhando centenas de molares, o veio avisar que o
chamavam da Urgência. Do quarto de banho em frente saiu a correr uma
rapariga meia nua abraçada a um molho de jornais em farrapos:
Há que apertar a tarraxa à Nélia, opinou o Corso das mandíbulas
desmontáveis. Não se consegue aturar. Ainda agora me disse que queria ver o
meu sangue a escorrer aos saltos pelo corredor da enfermaria.
Tem as nádegas cheias de caroços das injecções, defendeu o médico. Que
lhe posso fazer? Além disso a senhora não acha poética a ideia do seu sangue
derramado? Um fim à César, que mais quer?
E acrescentou num sussurro de confidência:
Que pensa a chefe das mortes violentas? Talvez dêem o seu nome a uma ala
do hospital: no fim de contas o Miguel Bombarda finou-se de um tiro.
De longe a Nélia enviou-lhes o mais obsceno gesto do seu mostruário
elementar de colégio de freiras: alguns dos jornais caíram-lhe das mãos perto de
uma empregada que encerava o soalho tripulando uma maquineta prima de um
cortador de relva esquemático, a qual devorou incontinenti as notícias num
apetite ronronante de jibóia, tossiu três ou quatro vezes, soluçou, e imobilizou-se
de encontro à parede numa agonia espectacular de king-kong cinematográfico. O
Napoleão precipitou-se a chinelar para ela como para um filho doente: o
psiquiatra calculou que fosse tentar, desesperada, a respiração boca-a-buraco, e
voltou as costas enfastiado por esse acto de amor contranatura.
O robot de puxar lustro é bom na cama?, perguntou à enfermeira que
regressava sem smarties, empunhando o tabuleiro vazio desprovido do encanto
trémulo das pastilhas.
Quanto mais se conhecem os homens mais se apreciam os
electrodomésticos, respondeu ela. Eu vivo maritalmente com um fogão de dois
bicos e somos felizes. Só é pena o pulmão de aço da botija de gazcidla.
Num asilo de malucos onde estão os malucos?, insistiu o médico. Porque nos
arrastamos aqui, nós os que ainda possuímos licença de saída diária, se todas as
semanas há um barco para a Austrália e existem boomerangs que não regressam
ao ponto de partida?
Eu sou velha demais e você demasiado novo, explicou a enfermeira. E os
boomerangs acabam sempre por voltar nem que seja em bicos de pés, à noite,
num assobiozinho envergonhado.
Voltar, pensou o psiquiatra repetindo a palavra num vagar de camponês que
enrolasse mortalha pensativa na tarde de um campo de trigo, voltar, abrir a porta
com a simplicidade literária do Suave Milagre e informar sorrindo Estou aqui?
Voltar como um tio da América, um filho do Brasil, um miraculado de Fátima de
vitoriosas muletas ao ombro, iluminado ainda pela visão de uma quiromante
celeste manejando hábeis truques bíblicos no palco de uma azinheira? Voltar
como voltara anos atrás da guerra de África, às seis da manhã, para um mês de
felicidade furtiva numa mansarda oblíqua, a certificar-se rua a rua, no táxi, de
que nada mudara na sua ausência, país a preto e branco de muros caiados e de
viúvas de negro, de estátuas de regicidas a levantarem braços carbonários em
praças habitadas, em doses equitativas, de reformados e de pombos, uns e outros
esquecidos já da alegria de um voo? A sensação de haver perdido a chave
embora a conservasse no porta-luvas do automóvel entre papéis manchados de
óleo e tubos de comprimidos para dormir fê-lo experimentar a angústia sem
amarras da solidão absoluta: algo que desconhecia e lhe entortava os gestos
impedia-o de marcar o número que se seguia ao seu nome na lista telefónica e
pedir socorro à mulher que amava e o amava. A crueldade dessa impotência
subiu-lhe aos olhos num nevoeiro de ácido difícil de reprimir como a turbulência
de um arroto. Os dedos da enfermeira vieram tocar-lhe de leve o cotovelo:
Se calhar, disse ela, sempre é capaz de haver boomerangs que não
regressam.
E conseguem manter-se à tona mesmo assim. E pareceu ao psiquiatra que
acabava de receber uma espécie de extrema-unção definitiva.
Ao descer as escadas para o Banco distinguiu ao longe, perto da penumbra de
sacristia a cheirar a verniz de unhas do gabinete das assistentes sociais, criaturas
feias e tristes a necessitarem elas próprias de assistência urgente, um grupo de
delegados de propaganda médica estrategicamente ocultos nas ombreiras das
portas vizinhas, prontos a assaltarem de enxurradas palavrosas e por vezes letais
os esculápios desprevenidos ao alcance, vítimas inocentes da sua simpatia
impositiva. O psiquiatra aparentava-os aos vendedores de automóveis na
loquacidade demasiado delicada e bem vestida, irmãos bastardos que se haviam
desviado, na sequência de um obscuro acidente cromossómico de percurso, da
linhagem dos faróis de iodo para as pomadas contra o reumático, sem contudo
perderem a incansável vivacidade solícita original. Espantava-o que aqueles
seres debitantes, sempre-em-pés da boa educação, donos de pastas obesas que
continham dentro de si o segredo capaz de transformar corcundas raquíticas em
campeões de triplo salto, lhe dedicassem em chusma atenções de Reis Magos
portadores de preciosas ofertas de calendários de plástico a favor dos
preservativos anti-sífilis Donald, o inimigo público número um dos aumentos
demográficos, suave ao tacto e com uma coroa de pelinhos afrodisíacos na base,
de jogos de xadrez em cartolina gabando discretamente em todas as casas os
méritos do xarope para a memória Einstein (três sabores: morango, ananás e bife
de lombo), e de pastilhas efervescentes que rolhavam as diarreias mas soltavam
as rédeas da azia, obrigando os doentes dos intestinos a preocuparem-se com as
fervuras do estômago, manobra de diversão com que lucravam os quartos de
água das Pedras bebidos a pequeninos goles terapêuticos nos balcões das
pastelarias. Os doutores saíam-lhes das pinças ferozes a cambalearem sob o peso
de folhetos e de amostras, tontos de discursos eriçados de fórmulas químicas, de
posologias e de efeitos secundários, e vários tombavam exaustos trinta ou
quarenta metros percorridos, espalhando em redor os perdigotos de pílulas do
último suspiro. Um empregado indiferente varria-lhes os restos clínicos para a
vala comum de um balde de lixo amolgado, resmungando baladas fúnebres de
coveiro.
Aproveitando a protecção de dois polícias que escoltavam um velhote digno
com cara de ajudante de notário embrulhado nas lonas confusas de uma
camisola de forças, o médico atravessou a salvo o bando ameaçador dos
propagandistas a aliciá-lo com o canto de sereia dos sorrisos uníssonos,
desdobrados como acordeões nas bochechas obsequiosas: uma manhã destas,
pensou, afogam-me num frasco de suspensão antibiótica amigdal do mesmo
modo que o meu pai possuía, nunca entendi porquê, guardado no armário da
estante, o troféu de caça do cadáver de uma escolopendra num tubo de álcool, e
vender-me-ão à Faculdade, encarquilhado como um aborto, para figurar no
mostruário de horrores do Instituto de Anatomia, talho científico atravessado de
Castelo Fantasma, com esqueletos pendurados de ferros verticais à maneira de
craveiros murchos a ampararem o seu desânimo a pedaços de cana, olhando-se
uns aos outros com órbitas vazias de militares na reserva.
A coberto das damas de honor do ajudante de notário, cujos bigodes tremiam
de timidez autoritária, o psiquiatra ultrapassou ileso um internado alcoólico das
suas relações que todas as manhãs teimava em narrar-lhe por miúdo
intermináveis disputas conjugais em que os argumentos eram substituídos por
animadíssimas batalhas campais de caçarolas (Chiça pá dei-lhe uma azevia no
alto da piolhosa, doutorzeco de uma cana, que me ficou oito dias a cuspir
brilhantina), uma senhora magrinha da secretaria que vivia no pânico do
esperma do marido e usava interrogá-lo ansiosamente acerca da eficácia
comparativa de duzentos e vinte e sete anticoncepcionais diferentes, e um doente
de barbas bíblicas de neptuno de lago que nutria por ele uma admiração
entusiástica feita de panegíricos vociferantes, todos mantidos a respeitosa
distância pelas aias da camisola de forças, comunicando ao ouvido peludo um do
outro os respectivos hálitos de alho. Passou o gabinete do dentista despovoador de
gengivas a lutar aos ganidos contra um molar tenaz, e julgava-se já
miraculosamente intacto na Urgência, porta de vidro fosco que lhe acenava
como a bandeira de pano da chegada de uma corrida de bicicletas, quando um
dedo perverso lhe tocou imperioso no intervalo das omoplatas, ossos salientes e
triangulares que atestavam pela forma o seu passado de anjo oculto sob a
fazenda do casaco num modesto pudor de origens divinas, como os bem-nascidos
arrotam no fim do almoço por benévola concessão social a um mundo de silvas.
Meu caro, questionou uma voz nas costas dele, que me diz à conspiração dos
comunistas?
Os polícias, ocupados a transportarem o ajudante de notário num cuidado de
moços de fretes carregando um piano esquisito que tocava sem cessar a sonatina
crivada de notas erradas do seu delírio de grandeza, abandonaram vilmente o
médico junto ao arquivo onde habitava uma dama míope, de óculos da espessura
de pisa-papéis, que lhe aumentavam os olhos até às proporções de hirsutos
insectos gigantescos cercados de enormes patas de pestanas, à mercê de um
colega baixinho à deriva no lago de cheviote do sobretudo, de chapéu tirolês
cravado na cabeça à maneira de uma rolha num gargalo no intuito vão de
impedir a tempestuosa fuga de bolhinhas gaseificadas das suas ideias. O colega
trouxe à superfície o gancho de mão e em vez de acenar por socorro
dependurou-se-lhe da gravata como um náufrago impaciente abraçado por
engano a uma cobra de água azul com pintas brancas que se lhe desfazia no
punho numa inércia mole de atacador. O psiquiatra pensou que toda a gente nesse
dia o queria separar de um dos últimos presentes que a mulher lhe dera no desejo
inútil de melhorar a sua aparência de noivo de província congelado numa postura
hirta de fotografia de feira: desde a adolescência que trazia consigo, colado à
assimetria das feições, o ar postiço e triste dos mortos de família nos álbuns de
retratos, de sorrisos diluídos pelo iodo do tempo. Meu amor, falou dentro de si
mesmo apalpando a gravata, sei que isto não alivia nem ajuda mas de nós dois
fui eu o que não soube lutar: e vieram-lhe à memória longas noites na praia
desfeita dos lençóis, a sua língua desenhando devagar contornos de seios
iluminados de uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert
Desnos a agonizar de tifo num campo de prisioneiros alemão murmurando É a
minha manhã mais matinal, a voz de John Cage a repetir Every something is an
echo of nothing, e a forma como o corpo dela se abria em concha para o
receber, vibrando tal as folhas dos cumes dos pinheiros agitados por um vento
invisível e tranquilo. O colega pequenino, com a pluma do chapéu tirolês a oscilar
à laia de agulha de um contador Geiger que encontrasse minério, obrigou-o a
encalhar numa esquina de parede, caranguejo doente filado pela teimosia de um
camaroeiro tenaz. Os membros pulavam no sobretudo movimentos brownianos
sem objectivo definido de moscas na mancha de sol de uma cave, as mangas
multiplicavam-se em gestos consternados de orador sacro:
Os gajos avançam, hã, os comunistas?
Na semana anterior o médico vira-o procurar de cócoras microfones do KGB
ocultos sob o tampo da secretária, prontos a transmitirem para Moscovo as
decisivas mensagens dos seus diagnósticos.
Avançam, garanto-lhe eu, balia o colega a rodopiar de inquietação. E esta
choldra, a tropa, o zé-povinho, a igreja, ninguém se mexe, borram-se de medo,
colaboram, consentem. Por mim (e a minha esposa sabe) o que me entrar em
casa leva um tiro de caçadeira pelos cornos. Olarila. Você já leu os cartazes que
puseram no corredor com o retrato do Marx, o Catitinha da economia, a despejar
as suíças em cima da gente?
E chegando-se mais, confidencial:
Eu topo que você anda lá por perto se é que não alinha com a cambada, mas
pelo menos lava-se, é correcto, o seu pai é professor da Faculdade. Conte-me cá:
vê-se a comer à mesa com um carpinteiro?
Na minha infância, pensou o psiquiatra, as pessoas escalavam-se em três
categorias não miscíveis rigorosamente demarcadas: a das criadas, dos
jardineiros e dos choferes, que almoçavam na cozinha e se levantavam à sua
passagem, a das costureiras e das senhoras de tomar conta, com direito a mesa à
parte e à consideração de um guardanapo de papel, e a da Família, que ocupava
a sala de jantar e velava cristãmente pelos seus mujiques (« pessoal» , chamavalhes
a avó) oferecendo-lhes roupa usada, fardas, e um interesse distraído pela
saúde dos filhos. Havia ainda uma quarta espécie, a das « criaturas» , que
englobava cabeleireiras, manicuras, dactilógrafas e enteadas de sargentos, as
quais rondavam os homens da tribo tecendo à sua volta uma pecaminosa teia de
soslaios magnetizadores. As « criaturas» não se « casavam» : « registavam-se» ,
não iam à missa, não se afligiam com o ingente problema da conversão da
Rússia: consagravam as suas existências demoníacas a prazeres que eu entendia
mal em terceiros andares sem elevador de onde os meus tios regressavam à
socapa risonhos de juventude recuperada, enquanto as fêmeas do clã, na igreja,
se dirigiam para a comunhão de olhos fechados e língua de fora, camaleões
prontos a devorarem os mosquitos das hóstias numa gula mística. De vez em
quando, a meio da refeição, se o psiquiatra, então garoto, mastigava de boca
aberta ou pousava os cotovelos na toalha, o avô apontava para ele o indicador
definitivo e profetizava cavernosamente:
Hás-de acabar nas mãos da cozinheira como o peru.
E o tremendo silêncio que se seguia avalizava com o seu selo branco a
iminência dessa catástrofe.
Responda, ordenou o colega. Vê-se a comer à mesa com um carpinteiro?
O médico tornou a ele no esforço de quem ajusta a imagem de um
microscópio desfocado: do alto de uma pirâmide de preconceitos quarenta
gerações burguesas contemplavam-no.
Porque não?, disse ele desafiando os cavalheiros de pêra e as damas de
abundante busto boleado ao torno que se tinham trabalhosamente cruzado entre
si, num crochet complexo, atrapalhados pelos suspensórios e pelas barbas do
corpete, para produzirem, ao cabo de um século de deveres conjugais, um
descendente capaz de revoltas tão impensáveis como a de uma dentadura postiça
que pulasse do copo de água em que sorria à noite para morder o próprio dono.
O colega recuou dois passos, siderado:
Porque não? Porque não? Homem, você é um anarquista, um marginal, você
pactua com o Leste, você aprova a entrega do Ultramar aos pretos.
Que sabe este tipo de África, interrogou-se o psiquiatra à medida que o outro,
padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião, se afastava em gritinhos
indignados prometendo reservar-lhe um candeeiro da avenida, que sabe este
caramelo de cinquenta anos da guerra de África onde não morreu nem viu
morrer, que sabe este cretino dos administradores de posto que enterravam cubos
de gelo no ânus dos negros que lhes desagradavam, que sabe este parvo da
angústia de ter de escolher entre o exílio despaisado e a absurda estupidez dos
tiros sem razão, que sabe este animal das bombas de napalm, das raparigas
grávidas espancadas pela Pide, das minas a florirem sob as rodas das camionetas
em cogumelos de fogo, da saudade, do medo, da raiva, da solidão, do desespero?
Como sempre que se recordava de Angola um roldão de lembranças em
desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas: o
nascimento da filha mais velha silabado pelo rádio para o destacamento onde se
achava, primeira maçãzinha de oiro do seu esperma, longas vigílias na
enfermaria improvisada debruçado para a agonia dos feridos, sair exausto a
porta deixando o furriel acabar de coser os tecidos e encontrar cá fora uma
repentina amplidão de estrelas desconhecidas, com a sua voz a repetir-lhe dentro
Este não é o meu país, este não é o meu país, este não é o meu país, a chegada
às quartas-feiras do avião do correio e da comida fresca, a subtil e infinitamente
sábia paciência dos luchazes, o suor do paludismo a vestir os rins de cintas de
humidade pegajosa, a mulher vinda de Lisboa com o bebé de surpreendentes íris
verdes para viajar com ele para o mato, sua boca quase mulata a sorrir
comestível na almofada. Nomes mágicos: Cuíto-Cuanavale, Zemza do Itombe,
Narriquinha, a Baixa do Cassanje coberta pelas altas pestanas dos girassóis em
manhãs limpas como ossos de luz, bailundos empurrados a pontapé para as
fazendas do norte, São Paulo de Luanda imitando o Areeiro encostado à valva da
baía. Que sabe este palerma de África, interrogou-se o psiquiatra, para além dos
cínicos e imbecis argumentos obstinados da Acção Nacional Popular e dos
discursos de seminário das botas mentais do Salazar, virgem sem útero
mascarada de homem, filho de dois cónegos explicou-me uma ocasião uma
doente, que sei eu que durante vinte e sete meses morei na angústia do arame
farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase morrer do
falciparum, assisti ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma filha na Malanje dos
diamantes, contornei os morros nus de Dala-Samba povoados no topo pelos tufos
de palmeiras dos túmulos dos reis Jingas, parti e regressei com a casca de um
uniforme imposta no corpo, que sei eu de África? A imagem da mulher à espera
dele entre as mangueiras de Marimba pejadas de morcegos aguardando o
crepúsculo apareceu-lhe numa guinada de saudade violentamente física como
uma víscera que explode. Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu
corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos
se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne de
que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice,
se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus
projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo
falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás
e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera
os olhos que encomendou pelo correio.
Na urgência os internados de pijama dir-se-ia flutuarem na claridade das
janelas como viajantes submarinos entre duas águas, de gestos lentificados pelo
peso de toneladas dos remédios. Uma velha em camisa, parecida com os autoretratos
finais de Rembrandt, vogava dez centímetros acima do seu banco
idêntica a um pássaro trôpego que fosse perdendo a espuma de vento dos ossos.
Bêbedos ensonados que o bagaço transformara em serafins rotos tropeçavam no
ar: todas as noites a polícia, os bombeiros ou a indignação da família vinham ali
abandonar, como num vazadouro derradeiro, os que tentavam em vão emperrar
as engrenagens do mundo escaqueirando o quinane do quarto, descobrindo
estranhos bichos invisíveis alapados nas paredes, ameaçando os vizinhos com a
faca do pão ou escutando o imperceptível assobio dos marcianos que a pouco e
pouco se vestem de colegas de escritório para revelarem às restantes galáxias a
chegada iminente do Anti-Cristo. Havia também os que se apresentavam
sozinhos, baços de fome, a oferecerem a nádega à seringa a troco de uma cama
onde dormir, clientes habituais que o porteiro reenviava, de imperioso braço
estendido à estátua de Marechal Saldanha, para as árvores do Campo de Santana
que o escuro confundia numa névoa de corpos abraçados. Aqui, pensou o
médico, desagua a última miséria, a solidão absoluta, o que em nós próprios não
aguentamos suportar, os mais escondidos e vergonhosos dos nossos sentimentos, o
que nos outros chamamos de loucura que é afinal a nossa e da qual nos
protegemos a etiquetá-la, a comprimi-la de grades, a alimentá-la de pastilhas e
de gotas para que continue existindo, a conceder-lhe licença de saída ao fim de
semana e a encaminhá-la na direcção de uma « normalidade» que
provavelmente consiste apenas no empalhar em vida. Quando se diz, considerou
ele de mãos nos bolsos a observar os serafins do bagaço, que os psiquiatras são
malucos, está-se tocando sem saber o centro da verdade: em nenhuma
especialidade como nesta se topam seres de crânio tão em saca-rolhas, tratandose
a si mesmos através das curas de sono impingidas por persuasão ou à força
aos que os procuram para se procurarem e arrastam de consultório em
consultório a ansiedade da sua tristeza, como um coxo transporta a perna manca
de endireita em endireita, em busca de um milagre impossível. Vestir as pessoas
de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um
rio de que se desconhecem as correntes, os peixes e o côncavo de rocha de que
nasce, assistir ao torvelinho da enchente sem molhar os pés, recomendar um
comprimido depois de cada refeição e uma pílula à noite e ficar saciado com
esse feito de escuteiro: o que me faz pertencer a este clube sinistro, meditou, e
sofrer quotidianamente remorsos pela debilidade dos meus protestos e pelo meu
inconformismo conformado, e até que ponto a certeza de que a revolução se faz
do interior não funciona em mim como desculpa, auto-viático para prosseguir
cedendo? Tratava-se de perguntas a que não sabia responder claramente e o
deixavam confuso e aflito consigo, eriçado de interrogações, de dúvidas, de
escrúpulos: quando ali entrara no início do internato e o levaram a visitar o
decrépito edifício medonho do hospital de que apenas conhecia até então o pátio
e a fachada, cuidara-se num casarão de província habitado pelos fantasmas de
Fellini: escorados por muros que escorriam de humidade pegajosa, débeis
mentais quase nus masturbavam-se em movimentos de balanço voltando para
ele o espanto desdentado das bocas; homens de cabeça rapada estendiam-se ao
sol, mendigavam ou acendiam cigarros cujas mortalhas eram pedaços de jornal
escurecidos de cuspo; velhos apodreciam nos colchões podres, vazios de
palavras, ocos de ideias, vegetais trémulos durando apenas; e havia o redondel da
8.a enfermaria e as pessoas contidas pelos ferros, símios vagarosos moendo
frases desconexas, a encalharem ao acaso nos buracos de curro em que
dormiam. E aqui estou eu, disse-se o médico, a colaborar não colaborando com a
continuação disto, com a pavorosa máquina doente da Saúde Mental trituradora
no ovo dos germenzinhos de liberdade que em nós nascem sob a forma canhestra
de um protesto inquieto, pactuando mediante o meu silêncio, o ordenado que
recebo, a carreira que me oferecem: como resistir de dentro, quase sem ajuda, à
inércia eficaz e mole da psiquiatria institucional, inventora da grande linha branca
de separar a « normalidade» da « loucura» através de uma complexa e postiça
rede de sintomas, da psiquiatria como grosseira alienação, como vingança dos
castrados contra o pénis que não têm, como arma real da burguesia a que por
nascença pertenço e que se torna tão difícil renegar, hesitando como hesito entre
o imobilismo cómodo e a revolta penosa, cujo preço se paga caro porque se não
tiver pais quem virá querer, à Roda, perfilhar-me? O Partido propõe-me a
substituição de uma fé por outra fé, de uma mitologia por outra mitologia, e
chegado a este ponto lembro-me sempre da frase da mãe do Blondin, « Não
tenho a Fé mas tenho tanto a Esperança» , e guino no último instante para a
esquerda na expectativa ansiosa de encontrar irmãos que me valham e a quem
possa valer, por eles, por mim e pelo resto. E é o resto, o que por pudor se não
enumera, o importante, como uma espécie de aposta, de perde-ganha de uma
probabilidade em trezentas, de acreditar na Branca de Neve e surgirem
anõezinhos autênticos de sob os móveis a demonstrarem-nos que é possível ainda.
Possível aqui e lá fora que os muros do hospital são concêntricos e abarcam o
país inteiro até ao mar, ao Cais das Colunas e às suas ondas domesticadas de rio à
portuguesa, senhor de mansas fúrias reflectindo a cor do céu e enodoado da
sombra gordurosa das nuvens, meu remorso chama-lhe o poeta, meu remorso de
todos nós.
Muros concêntricos, repetiu ele, labirinto de casas e de ruas, descida íngreme e
atrapalhada de mulher de saltos altos para a amplidão horizontal da barra, muros
tão concêntricos que nunca se parte de facto, antes se criam raízes de crochet na
alcatifa do sobrado, Creta de azulejos habitada de papagaios de janela e chineses
de gravatas, bustos de regicidas heróicos, pombos gordos e gatos capados, onde o
lirismo se mascara de canário em gaiola de cana soltando os trinadinhos de
sonetos domésticos. O Almanaque Bertrand faz as vezes da Bíblia, os animais de
estimação são bambis cromados e cãezinhos de loiça de acenar que sim, os
funerais a massa consistente da família.
Tornou a apalpar a gravata, verificou o nó: o meu cabelo de Sansão de seda
natural, murmurou sem sorrir. Um dia compro um colar de contas freak e um
jogo de pulseiras indianas e crio um Katmandu só para mim, com Rabindranah
Tagore e Jack Kerouac a jogarem a bisca com o Dalai-Lama. Deu uns passos no
sentido dos gabinetes e viu o ajudante de notário da camisola de forças sentado
diante de uma secretária a explicar a um clínico invisível que lhe haviam
roubado a Via Láctea. Os polícias, de pé, debruçavam-se do parapeito dos
cinturões para escutar melhor, à maneira de vizinhas assistindo da varanda a uma
cena de rua. Um deles, de bloco em riste, tomava notas de língua de fora numa
aplicação infantil. A velha que levitava no banco cruzou-se com ele a esvoaçar
num espalhafato de perdiz exausta: cheirava a urina estagnada, a solidão e a
abandono sem sabonete. Os odores da miséria, opinou o médico, os monótonos,
merdosos e trágicos odores da fome e da miséria. Na sala reservada aos
tratamentos os enfermeiros discutiam, encostados à maca, ao carro dos pensos,
ao armário de vidro dos remédios, as curiosas peripécias da última Assembleia
Geral de Trabalhadores, durante a qual o barbeiro e um dos choferes se haviam
tratado reciprocamente de filho da puta, ceguinho e facho do caralho. Um deles,
de seringa armada, preparava-se para injectar um alcoólico de feições
desdenhosas a segurar as calças à altura dos joelhos numa paciente espera de
veterano daquelas andanças. As pernas muito magras desapareciam sob franjas
de pêlos grisalhos que cercavam os testículos dependurados e vazios e o trapo de
pele amarrotado do pénis. Uma claridade mediterrânica aureolava as grades da
varanda como se banhassem num aquário iluminado pela lâmpada intensíssima
de uma primavera irreal.
Bom dia damas e cavalheiros meninas e meninos respeitável público, disse o
psiquiatra. Chegou-me aos ouvidos que telefonaram lá para cima, preocupados
como boas mães que são, a pedir os serviços prestimosos de um coveiro. Sou o
empregado da agência funerária A Primorosa da Ajuda (círios, velas e urnas) e
venho para as medidas do caixão: espero, porque me sindicalizei e odeio os meus
patrões, que o defunto tenha ressuscitado e saído a soltar vivas ao Beato Luís
Gonzaga.
O enfermeiro da seringa, com quem costumava cear, quando se encontravam
ambos de turno, camarões foleiros que o servente comprava numa cervejaria do
Martim Moniz, cravou a bandarilha terapêutica no bêbedo para lhe acalmar os
humores momentaneamente tranquilos de maré que se prepara para a mola de
um salto, e passou um algodão solene de bispo a crismar pela pele da nádega,
como um bom aluno apagando do quadro o resultado de um exercício fácil
demais para as suas capacidades acrobáticas. O doente puxou o cinto de nastro
para cima com tanta violência que o rompeu e ficou a olhar atónito o pedaço que
lhe caía da mão, no espanto de astronauta mirando uma alga lunar.
Estragaste o macarrão do almoço, aplaudiu o enfermeiro cuja reserva de
ternura se ocultava sob um sarcasmo demasiado óbvio para ser genuíno. O
médico aprendera a estimá-lo ao assistir à coragem com que combatia com os
meios ao seu alcance a inumana máquina concentracionária do hospital. O
enfermeiro lavou a seringa accionando várias vezes o êmbolo, colocou-a no
fervedor aquecido pela estreita túlipa azul do bico de gás e limpou os dedos à
toalha rota enforcada num grampo: fazia tudo isto em metódicos gestos lentos de
pescador para quem o tempo se não segmenta em horas como uma régua em
centímetros mas possui a textura contínua que confere à vida intensidade e
profundez inesperadas. Nascera à beira-mar, no Algarve, e embalara a fome na
infância com ventos mouros, perto de Albufeira, onde a vazante deixa na praia
cheiros doces de diabético. O alcoólico, esquecido, foi saindo para o corredor a
arrastar as alpercatas informes.
Aníbal, disse o psiquiatra ao enfermeiro que investigava os bolsos da bata à
procura de fósforos à maneira de um cão na cata do local em que enterrara um
osso precioso, você telefonou lá para cima a prometer que se eu viesse aqui me
dava um chupa-chupa de morango. Fiquei fodido consigo porque só gosto dos de
hortelã-pimenta. O enfermeiro acabou por encontrar os fósforos sob a pilha de
circulares amontoadas numa mesa de madeira branca cuja pintura se esfarelava
em placas pulvurentas de caspa:
Temos aí uma chatice das antigas, disse ele a riscar a lixa com raiva
desusada. A Sagrada Família que quer comer à canzana e à má fila o Menino
Jesus. Só a cabra da mãe vale um poema de marmeleiro bem passado. Agarrese
ao corrimão que estão os três no gabinete do fundo à sua espera.
O médico examinou um calendário de parede petrificado num março
antiquíssimo, quando morava ainda com a mulher e as filhas e um véu de alegria
tingia levemente cada segundo: sempre que o chamavam ao Banco visitava
aquele março de dantes numa espécie de peregrinação desencantada, e
procurava sem sucesso reconstruir dias de que conservava uma memória de
felicidade difusa diluída num sentimento uniforme de bem-estar doirado pela luz
oblíqua das esperanças mortas. Ao voltar-se notou que o enfermeiro observava
também o calendário onde uma rapariga loira e um preto gordíssimo procediam
nus a operações complicadas.
A mulher ou o mês?, perguntou-lhe o psiquiatra.
A mulher ou o mês o quê?, respondeu o enfermeiro.
Aquilo para que você está a apontar os faróis, precisou o psiquiatra.
Nem uma coisa nem outra, explicou o enfermeiro. Pensava só cá comigo no
que é que a gente faz aqui. A sério. Pode ser que venha um tempo em que esta
gaita mude e se possam encarar as coisas de olhos limpos. Em que os alfaiates
não sejam obrigados por decreto a esconder na largura das calças os colhões de
um homem.
E começou a limpar seringas já lavadas numa actividade feroz.
Algarvio de um corno, pensou o médico, pareces um poeta neo-realista a
julgar que altera o mundo com os versos que oculta na gaveta. Ou então és um
camponês sabido da ria a aguardar o crepúsculo para pescar ao candeio, de
lanterna escondida entre as redes do barco. E recordou-se da Praia da Rocha em
agosto, na época em que se casara, dos penedos esculpidos pelos Henry Moore
de sucessivas vazantes, da amplidão de areia sem marcas de pés e de como a
mulher e ele se haviam sentido Robinson Crusoe apesar dos turistas alemães
cúbicos, das inglesas andróginas como sopranos castrados, das americanas idosas
cobertas por chapéus inacreditáveis e dos óculos de lentes defumadas dos chulos
nacionais, latin lovers de pente de plástico no bolso de trás das calças, rondando
nádegas em ademanes de hienas.
Patrão, disse ele ao enfermeiro, pode ser que a gente viva para isso. Mas se
esperamos sentados puta que nos pariu aos dois.
Dirigiu-se ao cubículo do fundo com a sensação de ter sido injusto para com o
outro e o desejo de que ele entendesse que não agredira mais do que a parte
passiva de si próprio, a fracção sua que aceitava as coisas sem lutar e contra a
qual se rebelava. Gosto de mim ou não gosto de mim, pensou, até onde me aceito
e em que ponto começa de facto a censura do meu protesto? Os polícias, agora
cá fora, tinham tirado os bonés e afiguraram-se ao psiquiatra subitamente
despidos e inofensivos. Um deles trazia a camisola de forças do ajudante de
notário nos braços, apertada contra o peito como quem segura o casaco do
sobrinho à entrada de uma aula de ginástica.
No gabinete a Família preparava-se para a arremetida. O Pai e a Mãe, de pé,
ladeavam a cadeira do filho na hostilidade imóvel de cães de pedra de portão
dispostos a enormes latidos de queixas zangadas. O médico contornou em silêncio
a secretária e puxou a si o cinzeiro de vidro, o bloco timbrado do hospital, a
credencial da Caixa e o livro em que se registavam os doentes, como um
xadrezista preparando as peças para o início da partida. O Menino Jesus, ruivo e
com ar de pássaro aflito, fingia bravamente não se aperceber da sua presença
fixando os prédios tristes da Gomes Freire pela janela aberta, a franzir as
pálpebras semeadas de sardas transparentes.
Então o que há?, indagou jovialmente o médico a sentir a sua pergunta como
o apito de um árbitro que desse começo a um jogo sangrento. Se não protejo o
rapaz, pensou muito depressa escorregando um soslaio para o garoto em pânico
ainda controlado, estraçalham-no em duas dentadas. Geração do cogitus
interruptus, reflectiu ele. Caraças que me falta o auxílio do Umberto Eco.
O pai bombeou o peitilho da camisa:
Senhor doutor, disse com a pompa de uma declaração de guerra, saiba
vossência que este sacana droga-se.
E friccionava as mãos obsequiosas uma na outra como se estivesse a despacho
com o chefe da repartição. No mindinho de unha comprida, ao lado da aliança,
usava um enorme anel de pedra preta, e na gravata de ramagens doiradas
cravava-se um alfinete de coral representando um futebolista do Belenenses a
dar um pontapé numa bolinha de oiro. Assemelhava-se a um automóvel com
muitos acessórios, mantas nos assentos, penduricalhos, listra no capot, o nome Tó
Zé pintado na porta. Segundo a credencial era funcionário da Companhia das
Águas (um empregado pelo menos limpo, decidiu o psiquiatra) e o hálito dele
cheirava à açorda de sável da véspera.
Já era altura de mudarem a cor dos ficheiros, considerou sonhadoramente o
médico apontando três paralelepípedos de metal que ocupavam com a sua
maciez horrenda o espaço compreendido entre a porta e a janela.
Um verde destes agonia um almirante não achas?, perguntou ao puto que
permanecia deslumbrado com as maravilhas da Avenida Gomes Freire, mas
cujos lábios tremiam como o ventre de um pardal apavorado. Frima-te,
aconselhou-o mentalmente o médico, frima-te que és garraio fraco e a tenta
ainda nem começou. E trocou a posição do cinzeiro com a do livro num rock
estratégico, murmurando Segure-se às cuecas Dona Alzira que vem aí a
esquadra da Nato.
Nisto sentiu uma restolhada imprevista no mata-borrão da secretária: a mãe
despejava o conteúdo de um saco de papel repleto de embalagens de
medicamentos diversos sob o seu nariz surpreso, e arqueava para ele o corpo
vestido de casaco de leopardo de plástico, tensa de indignação furibunda. As
frases saíam-lhe da boca como os feijões-balas do canhão de lata que haviam
dado ao psiquiatra em pequeno, aquando de uma das suas numerosas anginas:
O meu filho tem que ser i-me-dia-ta-men-te internado, ordenou ela em tom
de prefeito de reformatório dirigindo-se cosmicamente ao desacerto moral do
Universo. Pastilhas é o que se vê, anda-me a repetir o quarto ano, falta ao
respeito aos pais, responde torto se responde, contou-me a vizinha de baixo que o
viram no Rato com uma desgraçada, não sei se me explico bem, quem quiser
entender que entenda. Isto aos dezasseis anos senhor doutor, feitos em abril,
nasceu de cesariana, por um triz que me dava cabo do canastro que até estive a
soro note lá. E nós a educá-lo às boas, a gastar dinheiro, a comprar livros, a
conversar com ele com falinhas mansas, a sermos comidos das papas na cabeça.
Confesse-me cá: está de acordo? E ainda o senhor doutor que se calhar também
tem filhos lhe pergunta pelos ficheiros.
Pausa para meter ar nas bóias das mamas entre as quais morava um coração
de esmalte com a fotografia do marido subalterno em mais jovem mas já
profusamente enfeitado de amuletos, e novo mergulho nas águas fumegantes da
zanga:
Umas semanas de hospital é do que ele necessita para se endireitar: eu tive
uma cunhada na 3.a, conheço os métodos. Umas semanas sem sair, sem se
encontrar com a pandilha dele, sem farmácias à mão para roubar comprimidos.
Uma pouca-vergonha ninguém pôr termo nisto: desde que o Salazar morreu
vamos de descalabro em descalabro.
O médico lembrou-se de muitos anos antes, ao voltarem do jantar de uma tia,
encontrarem no escritório do pai um agente da Pide à espera do irmão que
presidia à Associação de Estudantes de Direito, e da repulsa medrosa que o
homem, a observar as lombadas dos tratados de Neurologia do pai ausente num
à-vontade de proprietário, acendera neles. Apenas o mais novo olhava o bufo
sem ódio, espantado pela profanação arrogante daquele santuário de cachimbos
onde se entrava com a consciência da quase sagrada importância do local, e
rondava admirativamente o apóstata cheirando-lhe os gestos. De repente
apeteceu ao médico agarrar na cabeça pintada de loiro de Nossa Senhora e bater
com ela muitas vezes, sem pressa, deliberadamente, contra a esquina do
lavatório à sua esquerda, sob o espelho oblíquo que, visto da secretária, reflectia
um pedaço cinzento e cego de parede, como se a superfície hexagonal que em
tantas alturas o devolvera a si próprio houvesse sido acometida de uma espécie
de cataratas: atordoava-o não encontrar, colado à pupila de vidro estanhado, a
curva indagadora do seu sorriso de gato de Chester.
Um hospital ou uma prisão, disse o marido da harpia numa voz pomposa,
acariciando o monstruoso alfinete de gravata, que a gente não damos conta do
recado.
A mulher agitou o pulso em abano de vendedora de castanhas, como se lhe
varresse as palavras inúteis: era ela quem conduzia as operações e não admitia
partilhas de comando. Neta de cabo da Guarda Republicana, pensou o psiquiatra,
herdeira moral do chanfalho de cascar no povo do progenitor.
O senhor doutor tenha paciência mas tem de resolver isto e já, disse ela
eriçando o pêlo postiço do casaco. Faça-me o favor de ficar com ele que não o
quero em casa.
O puto iniciou um movimento que ela decepou cerce apontando-lhe o dedo
furibundo:
Não me interrompa sua besta que estou a falar com o senhor doutor.
E para o psiquiatra, definitiva:
Resolva as coisas como entender mas nós com ele não saímos daqui.
O médico avançou o peão de um agrafador no tabuleiro da secretária. Escalas
de serviço, algumas com o seu nome (o nosso nome impresso deixa de
pertencer-nos, pensou, torna-se impessoal e alheio, perde a intimidade familiar
da escrita à mão), empaladas em pregos que se oxidavam, decoravam as
paredes.
Aguentem os cavalos lá fora para eu falar com o rapaz, disse sem olhar para
ninguém num tom pálido de defunto. Os amigos evitavam discutir com ele em
momentos desses, quando o seu timbre se tornava neutro e sem cor e o azul das
órbitas como que se esvaziava de luz. E quero a porta fechada.
Portas fechadas, portas fechadas: o psiquiatra e a mulher deixavam sempre
aberta a do quarto das filhas e às vezes, enquanto faziam amor, as palavras
confusas dos sonhos delas misturavam-se com os seus gemidos numa trança de
sons que os unia de um modo tão íntimo que a certeza de nunca se poderem
separar como que apaziguava o receio da morte, substituindo-o por uma
tranquilizante sensação de eternidade: nada seria diferente do que então era, as
filhas não cresceriam nunca e a noite prolongar-se-ia num enorme silêncio de
ternura, com o gato espapado de sono junto ao calorífero, a roupa ao acaso nas
cadeiras, e a companhia fiel dos objectos conhecidos. Pensou em como no
cobertor da cama se multiplicavam manchas brancas de esperma e cones
vaginais, e de como na almofada da mulher havia sempre pegadas de rímel,
pensou na indizível expressão dela quando se vinha ou de quando, sentada sobre
ele, cruzava as mãos na nuca e rodava o corpo para um e outro lado a fim de lhe
sentir melhor o pénis, com os seios grandes balouçando de leve no tronco estreito.
GTS disse-lhe sem falar sentado à secretária do hospital, recuperando o morse
através do qual comunicavam sem serem entendidos de mais ninguém, GTS até
ao fim do mundo, meu amor, agora que somos já Pedro e Inês nas criptas de
Alcobaça à espera do milagre que há-de vir. E recordou-se, para fugir ao perigo
iminente das lágrimas, de imaginar que os cabelos das infantas de pedra
cresciam para dentro das cabeças em tranças poeirentas, e que escrevera isso
num dos cadernos de poemas que periodicamente destruía como certos pássaros
comem os filhos numa crueldade enjoada. Cada vez mais detestava emocionarse:
sinal de que envelheço, verificou, dando cumprimento à frase da mãe atirada
ao ar da sala com profética solenidade:
Com um feitio assim hás-de acabar sozinho como um cão. E os retratos
emoldurados pareciam dar-lhe razão acenando de concordância amarelecida.
O Menino Jesus, que não cessara de binocular o Botelho colado ao vidro da
janela, deslizou na direcção do médico um soslaio rápido e este, que regressava
da sua história interior para o motivo pelo qual ali se encontrava, agarrou a
hostilidade do garoto como quem pula no último segundo para o estribo de um
eléctrico a andar:
O que tens na caixa dos pirolitos?, perguntou.
Pelo arrepio das narinas topou que o miúdo hesitava e jogou a fundo as suas
cartas lembrando-se das instruções de salvar náufragos da sua infância, cartazes
afixados no balneário da praia com homens de bigode e fato de banho às riscas
nadando sobre cinco colunas em prosa miúda de advertências e proibições.
Olha, disse ele ao puto, detesto tanto isto como tu e não se trata de paleio de
chui porreiraço em esquadra de polícia. Nem que os teus velhos me apontassem
um canhangulo aos cornos tu ficavas a alombar aqui, mas é capaz de ser boa
ideia explicares-me um bocadinho o que se passa: pode ser que os dois juntos
compreendamos algumas raspas desta merda, pode ser que não, e nenhum de
nós perde nada em experimentar.
O ruivo regressara à contemplação da janela: mediu no interior dele o que lhe
fora dito e decidira-se pelo silêncio. As suas pestanas cor-de-rosa cintilavam na
luz, semelhantes aos fios de teia de aranha que unem as vigas dos sótãos.
Preciso que me ajudes para poder ajudar-te, insistiu o psiquiatra. Cada um
para o seu lado não vamos longe e falo-te de mãos limpas. Estás solitário e à
brocha e os teus pais lá fora desejosos de te enfiarem aqui: caralho, a única coisa
que te peço é que colabores comigo para impedir isso e não fiques aí como um
furão espantado.
O Menino Jesus, de boca apertada, continuava a estudar a Gomes Freire e o
psiquiatra apercebeu-se da estupidez de continuar: recuou o peão do agrafador
sentindo o frio agradável do metal na pele, apoiou as palmas no mata-borrão
verde, acabou por levantar-se na renitência de um Lázaro acordado por um
Cristo inoportuno. Ao sair correu os dedos no cabelo do rapaz e o crânio dele
encolheu-se para o interior dos ombros à laia de uma tartaruga enfiando-se à
pressa na casca: por este tipo e por mim já não existe muito a fazer, pensou o
psiquiatra, encontramo-nos ambos, embora de maneiras diversas, no fundo dos
fundos, onde nenhum braço chega, e em se acabando a reserva de oxigénio dos
pulmões adeus Maria. Só oxalá que eu não arraste ninguém por esta queda
abaixo.
Abriu a porta de chofre e deu com os pais do miúdo inclinados para a
fechadura numa espreita infantil: puseram-se os dois direitos tão depressa quanto
puderam, recuperando a pulso a dignidade encartada dos adultos, e o médico
quase olhou para eles numa espécie de pena, a mesma que todas as manhãs o
visitava ao observar o rosto barbudo e em que se reconhecia mal, caricatura
gasta de si próprio. O enfermeiro, acabados os almoços, aproximou-se rente à
parede, arrastando os chinelos-tamancos que costumava calçar quando em
serviço. O ressonar próximo do alcoólico da injecção assemelhava-se ao ranger
rítmico de sola húmida.
Vocês vão levar o garoto para casa, disse o psiquiatra aos pais do ruivo. Vão
levar o vosso filho para casa, pianinho e na calma, e voltam cá segunda-feira
para uma conversa grande, sossegada, que isto é assunto de falas compridas e
atempadas, sem pressa. E aproveitem o domingo para olhar para dentro um do
outro e do pintassilgo da gaiola, olhar muito para dentro um do outro e do
pintassilgo da gaiola.
Minutos depois achava-se no pátio do hospital ao pé do seu pequeno automóvel
amolgado, sempre sujo, meu minúsculo bunker ambulante, meu abrigo.
Qualquer dia não distante, decidiu, perco a valer a transmontana e colo uma
andorinha de loiça no capot.
Quando entrou no restaurante, quase a correr porque o relógio da garagem
vizinha marcava uma e um quarto, o amigo já o esperava do outro lado da porta
de vidro, a examinar os livros policiais que se acumulavam numa espécie de
estante rotativa de arame, pinheiro de metal adubado por um estrume de jornais
de direita empilhados no chão. A empregada com cara de raposa da tabacaria,
protegida por uma muralha de revistas, ensaia va o seu inglês esquemático para
camones benévolos com um casal de meia-idade a quem aquela gíria esquisita
de que reconheciam nebulosamente uma ou outra palavra ocasional surpreendia.
A raposa completava o seu discurso com grande cópia de gestos exemplificativos
de roberto de feira, os outros retorquiam-lhe num morse de caretas, e o amigo,
que abandonara os livros, assistia fascinado a esse ballet frenético de seres que
permaneceriam irremediavelmente estranhos mau grado os seus esbracejados
esforços para se encontrarem numa linguagem comum. O psiquiatra desejou
com desespero um esperanto que abolisse as distâncias exteriores e interiores que
separam as pessoas, aparelho verbal capaz de abrir janelas de manhã nas fundas
noites de cada criatura como certos poemas de Ezra Pound nos mostram de
súbito os sótãos de nós mesmos num maravilhamento de revelação: a certeza de
ter topado um companheiro de viagem em banco à primeira vista vazio e a
alegria da partilha inesperada. Uma das coisas que mais o aproximava da mulher
consistia precisamente em conseguir isso com ela sem necessidade sequer de se
vestir de frases, a capacidade de se entenderem num rápido soslaio e que nada
tinha a ver com o conhecimento um do outro porque desde a primeira vez em
que se encontraram fora assim, eram ambos então ainda muito novos e haviamse
quedado siderados com a estranha força oculta daquele milagre que com mais
ninguém lhes sucedia, união tão perfeita e tão funda que, pensava, se as filhas a
lograssem um dia teria valido a pena para ele o tê-las feito e para elas todos os
sarampos da vida achariam razão. A mais velha, principalmente, assustava-o:
receava a fragilidade das suas fúrias intempestivas, os seus múltiplos medos, os
tensos e atentos olhos verdes no rosto de Cranach: por estar na guerra em África
nunca a sentira mover-se no ventre da mãe e ele representara para ela, durante
meses, um retrato na sala que lhe designavam com o dedo, desprovido de relevo
e de espessura de carne. Nos beijos fugidios que trocavam morava como que um
resto desse ressentimento mútuo, contido a custo à beira da ternura.
O almirante melancólico que arrastava a reforma agaloada junto à tabacaria
do restaurante sonhando Índias trémulas ao longe abriu a porta de vidro para
deixar passar dois sujeitos de aspecto competente, ambos de óculos, um dos quais
afirmava ao outro:
Deixei-lhe a coisa em pratos limpos, sabes como eu sou. Fui-me a trote ao
gabinete do gajo e disse logo: se você seu sacana não me manda de volta à
minha secção não lhe sobra um corno inteiro. Só queria que visses aquele caralho
de merda a borrar-se de cagaço.
O que leva os porteiros-almirantes, pensou o médico, a trocar o mar por
restaurantes e hotéis, de pontes de comando reduzidas às proporções de capachos
gastos, e estendendo a mão curva na direcção das gorjetas como o elefante do
Jardim estica a tromba para os molhos de cenouras do tratador? Georges anda
ver o meu país de marinheiros a navegar nas águas insonsas da subserviência
resignada. Na berma do passeio os sujeitos dos óculos acenavam para um táxi
vazio como náufragos para um barco indiferente. O casal de meia-idade tentava,
com o auxílio do catecismo de uma gramática, exclamações em zulu em que
ecoavam, distorcidas, semelhanças remotas com português de Linguaphone do
género O quintal do meu tio é maior do que o lápis do teu irmão. O psiquiatra,
que aproveitara a saída dos náufragos para se introduzir de perfil, tal os egípcios
da História do Matoso, no vestíbulo das Galerias, correspondeu com uma
continência aproximativa à vénia indefinida do almirante e admirou-se (como
sempre lhe sucedia) que o marujo não depositasse uma gota de cuspo no médio e
o erguesse para estudar a direcção do vento, à maneira dos corsários de órbita
tapada dos filmes da sua infância. Somos ele e eu Sandokans de meia-idade,
pensou o médico, em que a aventura consiste em decifrar a página necrológica
do jornal na esperança de que a omissão do nosso nome nos garanta estarmos
vivos. E vamos entretanto partindo aos pedaços, por fracções, o cabelo, o
apêndice, a vesícula, alguns dentes, como encomendas desmontáveis. Lá fora o
vento mexia nos ramos dos plátanos como ele tocara na cabeça do puto no
hospital, e por detrás da Penitenciária acumulava-se um cinzento espesso de
ameaças. O amigo tocou-lhe de leve no cotovelo: era alto, jovem, um pouco
curvado, e os olhos possuíam uma serena suavidade vegetal.
O meu avô esteve ali um porradão de meses, informou-o o psiquiatra
indicando com o queixo o edifício da prisão e o muro de cartolina ao longo da
Marquês da Fronteira, agora sombria de chuva próxima. Esteve ali um porradão
de meses depois da revolta de Monsanto, tropa monárquico percebes, até ao fim
assinou o Debate. O meu pai costumava contar-nos como ia visitá-lo com a
minha avó à choça e subiam a avenida no verão, esmagados de calor, ele vestido
à maruja como macaco de realejo, ela de chapéu e sombrinha a empurrar a
barriga grávida adiante de si como o Florentino moço de fretes carregava pianos
por Benfica num carro de mão descomunal. Não, a sério, repara no quadro: a
alemã de órbita azul cujo pai se suicidou com duas pistolas sentou-se à secretária
e trás, e o garoto apertado na farda de carnaval, dueto a caminho de um capitão
de bigodes que desceu do Forte com um tipo ferido às costas até encalhar nas
espingardas dos carbonários. Nem se distinguem as feições nas fotografias ovais
desse tempo ardente, e quando nós nascemos já o Salazar transformara o país
num seminário domesticado.
Quando eu andava na escola, disse o amigo, a professora, que cheirava mal
dos pés aliás tortos, mandou-nos desenhar os bichos do Zoológico e eu fiz o
cemitério dos cães, lembras-te como é? O Alto de São João dos caniches? Dá-me
ideia às vezes que Portugal todo é um pouco isso, o mau gosto da saudade em
diminutivo e latidos enterrados debaixo de lápides pífias.
Ao nosso Mondego a eterna saudade da sua Leninha, declarou o médico.
Ao querido Bijú dos donos que nunca o esquecem Milú e Fernando,
respondeu o amigo.
Agora, disse o psiquiatra, substituem os funerais dos rafeiros pelos
agradecimentos ao Divino Espírito Santo ou ao Menino Jesus de Praga no Diário
de Notícias. Terra do camandro: se El-Rei D. Pedro voltasse ao mundo não
achava em todo o reino quem capar. Já se nasce Inválido do Comércio e
reduzimos as ambições ao primeiro prémio do sorteio da Liga de Cegos João de
Deus, Ford Capri manhoso em cima de camioneta a tonitruar de altifalantes.
O amigo roçou a barba loira no ombro do médico: parecia um ecologista que
houvesse feito à burguesia a generosa concessão de uma gravata.
Tens escrito?, interrogou.
De mês a mês desfechava de súbito esta pergunta aterradora, porque para o
psiquiatra o manuseio das palavras constituía uma espécie de vergonha secreta,
obsessão eternamente adiada.
Enquanto o não fizer posso sempre acreditar que se o fizer o faço bem,
explicou ele, e compensar-me com isso das minhas muitas pernas mancas de
centopeia coxa, enxergas? Mas se começar um livro a sério e parir merda que
desculpa me fica?
Podes não parir merda, argumentou o amigo.
Também posso ganhar a casa da Eva do Natal sem comprar a revista. Ou ser
eleito papa. Ou marcar livres em folha seca num estádio cheio. Deixa lá que
depois de eu morrer tu publicas os meus inéditos com um prefácio elucidativo,
Fulano, Tal Como O Conheci. Chamar-te-ás Max Brod e podes-me tratar na
intimidade do leito por Franz Kafka.
Tinham abandonado o almirante a assoar-se tumultuosamente à vela do lenço e
escolhido o andar do meio, que o médico preferia pela tonalidade de incubadora
da luz, lâmpadas escondidas em tubos de passadeira de latão. As pessoas comiam
ombro a ombro como os apóstolos na última Ceia e do outro lado das ferraduras
dos balcões os empregados agitavam-se num frenesim de insectos, fardados de
branco, comandados por um tipo à paisana de mãos atrás das costas que
recordou ao psiquiatra os fiscais das obras a assistirem de palito nos dentes ao
esforço de galés dos operários: nunca entendera a razão de ser dessas criaturas
autoritárias e silenciosas observando o trabalho dos outros com pupilas de goraz,
encostados a gigantescos Mercedes azul cueca. O amigo debruçou-se para colher
a ementa pousada numa calha de metal sobre frascos de mostarda e de molhos
diversos (os produtos de beleza da culinária, pensou o médico), abriu-a com
unção cardinalícia, e começou a ler baixinho o nome dos pratos num regalo
fradesco: nunca concedera a ninguém a partilha dessa operação voluptuosa, ao
passo que o psiquiatra se interessava preferencialmente pelos preços, herança da
casa dos pais onde a sopa se multiplicava, indefinida, refeição após refeição,
num prodígio aguado. Um dia, era ele já homem, surgiu uma garrafa de vinho
na mesa e a mãe explicou repartindo os olhos claros pela descendência
estupefacta:
Agora, graças a Deus, podemos.
Minha velha, pensou ele, minha velha-velha nunca soubemos entender-nos
bem um com o outro: logo à nascença te quase matei de eclampsia, tirado a
ferros de ti, e segundo a tua perspectiva tenho caminhado pelos anos de
trambolhão em trambolhão a caminho de uma qualquer mas certa desgraça
derradeira. O meu filho mais velho é maluco, anunciavas às visitas para
desculpar as (para ti) bizarrias do meu comportamento, as minhas inexplicáveis
melancolias, os versos que às ocultas segregava, casulos de sonetos para uma
angústia informe. A avó onde eu ia aos domingos com a ideia posta nas nádegas
da criada, e que morava à sombra da glória e das condecorações de dois
generais defuntos, avisava-me doridamente à hora do bife:
Tu matas a tua mãe.
E mato-te ou mato-me minha velha que durante tanto tempo pareceste minha
irmã, pequena, bonita, frágil, pastorinha de vitral e bruma do Sardinha, de horário
distribuído entre o Proust e o Paris-Match, parideira de herdeiros machos que te
deixaram intacta no enxuto das ancas e no arame fino dos ossos? Herdei talvez de
ti o gosto do silêncio, e as sucessivas barrigas não te consentiram o espaço de me
amares como eu necessitava, como eu queria, até que ao darmos pela existência
frente a frente um do outro, tu minha mãe e eu teu filho, era tarde demais para o
que, na minha forma de sentir, não tinha havido. O gosto do silêncio e o fitarmonos
como estranhos separados por distância impossível de abolir, que pensarás de
facto de mim, da minha vontade informulada de te reentrar no útero para um
demorado sono mineral sem sonhos, pausa de pedra nesta corrida que me
apavora e que do exterior se me diria imposta, enfrenesiado trote da angústia na
direcção do repouso que não há. Mato-me, mãe, sem que ninguém ou quase
ninguém o note, baloiço pendurado na corda de um sorriso, choro por dentro
humidades de gruta, suor de granito, secreto nevoeiro em que me escondo.
Silêncio até na música de fundo do restaurante, pastilha rennie em clave de sol a
ajudar digestões de engolir apressado para avestruzes que comungam pizzas a
contra-relógio, música de fundo que me recorda sempre linguados de fusas a
alaparem-se nas areias da pauta com olhinhos melosos observando
protuberantemente o aquário, embalo de intestinos resignados. O amigo
conseguiu por fim captar o interesse de um empregado que vibrava de
impaciência, esporeado por múltiplos chamamentos, como um cavalo picado por
ordens simultâneas e contraditórias, sacudindo as crinas ralas do cabelo de
indecisão aflita.
O que é que escolhes?, perguntou ao médico que disputava o seu metro de
balcão a uma enorme dama obesa ocupada pela pirâmide de um enorme gelado
obeso, barroco de frutas cristalizadas, com o qual combatia ferozmente a grandes
golpes de colher: não se entendia bem qual dos dois devoraria o outro.
Hamburguer com arroz, disse o psiquiatra sem olhar o missal dos peixes e das
carnes em que o latim dera lugar a um francês de caçarolas ditado pela
autoridade de prima-dona do cozinheiro, pemican, ó cara pálida meu irmão,
antes de ingressar na Pradaria das Caçadas Eternas.
Um hamburguer e uma perna de porco, traduziu o amigo para o empregado
quase a estalar de desespero. Mais um minuto, pensou o médico, e abrem-se-lhe
fendas de terramoto nas bochechas e todo ele se desintegra no chão num fragor
de derrocada.
Síncope de prédio antigo, disse alto, síncope de Prémio Valmor atacado de
lepra e de caruncho.
A senhora do sorvete guinou para ele soslaio de cão vadio prestes à refrega por
recear ameaçada a sua vasculhação de lixo comestível: primeiro o chantilly e a
seguir a metafísica, reflectiu o psiquiatra.
O quê?, perguntou o amigo.
O quê o quê?, perguntou o médico.
Mexias a boca e não ouvi um som, disse o amigo. Como as beatas nas igrejas.
Estava cá a magicar que escrever é um bocado fazer respiração artificial ao
dicionário de Moraes, à gramática da 4.a classe e aos restantes jazigos de
palavras defuntas, e eu ora cheio ora vazio de oxigénio, aparvalhado de dúvidas.
Defronte deles uma rapariga vesga idêntica a um pardal com cio segredava
risos confidenciais a um quadragenário encurvado em concha para lhe receber
as gargalhadinhas saltitantes. O psiquiatra quase apostava que o homem havia
sido padre pela ausência de arestas dos seus gestos e pela curva mole dos beiços
em que introduzia pedaços de pão num ritmo certo de metrónomo, ficando a
mastigar demoradamente em vagares desdenhosos de camelo. Das pálpebras
desciam soslaios baços e lentos e a rapariga vesga, maravilhada, mordiscava-lhe
com os dentes estragados um pedaço da orelha à laia de uma girafa estendendo a
língua grossa, por cima das grades, para as folhas dos eucaliptos.
Um segundo empregado, parecido com Harpo Marx, empurrou para as toalhas
de papel as fatias de porco assado e o hamburguer. De garfo em riste o médico
sentiu-se vitelo atrelado à manjedoura que partilhava com mais vitelos,
aprisionados todos pela tirania dos empregos, sem tempo para a alegria e para a
esperança. Trabalho, o passeio de automóvel aos domingos segundo o inevitável
triângulo Casa-Sintra-Cascais, novamente trabalho, novamente o passeio de
automóvel, e isto até que uma carreta funerária nos colha de surpresa à esquina
do enfarte e termine o ciclo no ponto final dos Prazeres. Depressa por favor
depressa, pediu ele com o corpo todo ao Deus da sua meninice, barbudo papão
amigo íntimo das tias, senhorio do sacristão coxo de Nelas, columbófilo divino
dono das caixas das esmolas e dos Santos Expeditos dos altares laterais, com
quem mantinha a relação desiludida de amantes que pouco aguardam um do
outro. Como ninguém lhe respondesse comeu o único cogumelo que enfeitava o
hamburguer e que se assemelhava a um molar amarelecido à falta de dentífrico.
Pelo silêncio do amigo notou que ele esperava a justificação do telefonema da
manhã com a sua paciência habitual de árvore tranquila.
Cheguei ao fundo, disse o psiquiatra com o cogumelo ainda na língua,
lembrando-se de que em pequeno, na catequese, o haviam prevenido ser horrível
pecado falar antes de engolir a hóstia. Ao fundo dos fundos, chiba. Ao fundo do
fundo dos fundos.
Ao lado da vesga um cavalheiro idoso lia as Selecções à espera do almoço: Eu
Sou O Testículo De João. Para que quererá os testículos um sujeito de sessenta
anos?
Cheguei ao fundo dos fundos, continuou o psiquiatra, e não tenho a certeza de
conseguir sair dos limos onde estou. Não tenho mesmo a certeza de que haja
sequer saída para mim, percebes? Às vezes ouvia falar os doentes e pensava em
como aquele tipo ou aquela tipa se enfiavam no poço e eu não achava forma de
os arrancar de lá devido ao curto comprimento do meu braço. Como quando em
estudantes nos mostravam os cancerosos nas enfermarias agarrados ao mundo
pelo umbigo da morfina. Pensava na angústia daquele tipo ou daquela tipa, tirava
remédios e palavras de consolo do meu espanto, mas nunca cuidei vir um dia a
engrossar as tropas porque eu, porra, tinha força. Tinha força: tinha mulher, tinha
filhas, o projecto de escrever, coisas concretas, bóias de me aguentar à
superfície. Se a ansiedade me picava um nada, à noite, sabes como é, ia ao
quarto das miúdas, àquela desordem de tralha infantil, via-as dormir, serenava:
sentia-me escorado, hã, escorado e a salvo. E de repente, caralho, voltou-se-me
a vida do avesso, eis-me barata de costas a espernear, sem apoios. A gente,
entendes, quero dizer eu e ela, gostava muito um do outro, continua a gostar
muito um do outro e os tomates desta merda é eu não conseguir pôr-me outra vez
direito, telefonar-lhe e dizer Vamos lutar, porque se calhar perdi a gana de
lutar, os braços não se movem, a voz não fala, os tendões do pescoço não
seguram a cabeça. E foda-se, é só isso que eu quero. Acho que nós os dois temos
falhado por não saber perdoar, por não saber não ser completamente aceite, e
entrementes, no ferir e no ser ferido, o nosso amor (é bom falar assim: o nosso
amor) resiste e cresce sem que nenhum sopro até hoje o apague. É como se eu
só pudesse amá-la longe dela com tanta vontade, catano, de a amar de perto,
corpo a corpo, conforme desde que nos conhecemos o nosso combate tem sido.
Dar-lhe o que até hoje lhe não soube dar e há em mim, congelado embora mas
respirando sempre, sementinha escondida que aguarda. O que a partir do início
lhe quis dar, lhe quero dar, a ternura, percebes, sem egoísmo, o quotidiano sem
rotina, a entrega absoluta de um viver em partilha, total, quente e simples como
um pinto na mão, animal pequeno assustado e trémulo, nosso.
Calou-se de garganta embrulhada enquanto o cavalheiro das Selecções, depois
de dobrar um canto de página antes de fechar a revista, vertia o conteúdo de um
pacote de açúcar, em piparotes cautelosos, na icterícia do chá de limão. A dama
obesa vencera definitivamente o gelado e cabeceava de leve num saciamento de
jibóia. Três adolescentes míopes conferenciavam sobre os bifes respectivos,
mirando de viés uma ruiva solitária de faca parada no ar como a pata suspensa
de uma cegonha, entregue a meditações indecifráveis.
Nenhum de vocês arranja uma pessoa como o outro, disse o amigo afastanto
o prato vazio com as costas da mão, nenhum de vocês arranja uma pessoa tão
para o outro como o outro, tão de acordo com o outro como o outro, mas tu
castigas-te e castigas-te numa culpabilidade de alcoólico, enfiaste-te na idiotice
do Estoril, desapareceste, ninguém te vê, evaporaste-te no ar. Continuo à tua
espera para acabarmos o trabalho sobre Acting-Out.
Ando vazio de ideias, disse o médico.
Andas vazio de tudo, respondeu o amigo. Porque é que já agora não enfias os
cornos contra um muro?
O psiquiatra recordou-se de uma frase da mulher pouco antes de se separarem.
Estavam sentados no sofá vermelho da sala, sob uma gravura do Bartolomeu que
ele apreciava muito, enquanto o gato buscava um espaço morno entre os quadris
de ambos, e nisto ela voltara para ele os grandes e decididos olhos castanhos e
declarara:
Não admito que comigo ou sem mim você desista porque eu acredito em si e
apostei em si a pés juntos.
E lembrou-se de como isso o aguilhoara e lhe doera e de como enxotara o
bicho para abraçar o corpo estreito e moreno da mulher, repetindo GTS, GTS,
GTS, numa emoção aflita: fora ela a primeira pessoa a amá-lo inteiro, com o
peso enorme dos seus defeitos dentro. E a primeira (e a única) a encorajá-lo a
escrever, pagasse o preço que pagasse por essa quase tortura sem finalidade
aparente de meter um poema ou uma história num quadrado de papel. E eu,
perguntou-se, que fiz eu verdadeiramente por ti, em que tentei, de facto, ajudarte?
Contrapondo o meu egoísmo ao teu amor, o meu desinteresse ao teu interesse,
a minha desistência ao teu combate?
Sou um cagado a pedir socorro, disse ele ao amigo, tão cagado que nem me
aguento nas canetas. A pedir mais uma vez a atenção dos outros sem dar nada
em troca. Choro lágrimas de crocodilo puto que nem a mim me ajudam e se
calhar é só em mim que penso.
Experimenta ser homem para variar, respondeu o amigo arpoando o irmão
Marx pela manga para lhe pedir um café duplo. Experimenta ser homem um
bocadinho que seja: pode ser que te aguentes no balanço.
O médico olhou para baixo e reparou que não tocara no hamburguer. A vista da
carne e do molho coalhados e frios acendeu nele uma espécie de tontura
agoniada que lhe trepou em torvelinho das tripas para a boca. Desceu do banco
como de uma sela difícil de repente excessivamente móvel, contendo o vómito a
poder dos músculos da barriga, mãos abertas adiante da boca, atarantado.
Conseguiu ainda alcançar os lavabos e, dobrado para a frente, principiou a
expulsar aos arrancos, no lavatório mais próximo da porta, restos confusos do
jantar da véspera e do pequeno-almoço matinal, pedaços esbranquiçados e
gelatinosos que escorregavam, repulsivos, para o ralo. Quando se conseguiu
dominar o suficiente para lavar a boca e as palmas viu no espelho que o amigo,
por detrás dele, lhe olhava a cara escavada de palidez, torcida ainda pela
sufocação e pelas cólicas.
Eh pá, disse ele para a imagem reflectida, anjo tutelar da sua angústia imóvel
sobre um fundo de azulejos, eh pá, cona da prima, cu de velha ranhosa, tomates
do padre Inácio, é mesmo muito fodido ser homem. Não é?
As nuvens que formavam como que um boné de dormir sobre a silhueta de
cartão recortado da Penitenciária estendiam a sombra escura até meio do
Parque enquanto o médico se dirigia para o automóvel que como de costume
deixara estacionado não se lembrava bem onde, num qualquer ponto sob o verde
doirado dos plátanos que bordejavam o enorme espaço central aberto até ao rio
numa amplidão sem majestade. Um grupo de ciganos acocorados no passeio
discutia aos gritos a posse de um relógio de parede decrépito, cujo pêndulo
agónico oscilava como um braço caído de uma maca, soltando de quando em
quando um tique-taque exausto de último suspiro. Não era ainda a hora de os
homossexuais povoarem os intervalos entre as árvores com as suas silhuetas
expectantes, afagados por carros que se roçavam languidamente por eles à
maneira de grandes gatos ávidos, tripulados por senhores que envelheciam como
as violetas murcham, numa doçura magoada. O psiquiatra tivera ali o seu
primeiro encontro com uma prostituta que ocupava em grandes passadas
proprietárias oito metros de calcário, majestosa de pérolas falsas e de pavorosos
anéis de vidro, enorme padeira de Aljubarrota que o salvara a golpes de malinha
de mão dos sorrisos de sereia de um par de travestis apertados em cetins
vermelhos, com botas de tropa nos pés, furriéis arredondando o pré com parttimes
de carnaval, a fim de o arrastar autoritariamente para um quarto sem
janelas com gravuras de frades borrachos nas paredes e o retrato de Cary Grant
no oval de crochet da cómoda. Dividido entre a timidez e o desejo o médico
assistira em peúgas, abraçado à roupa que não sabia onde pousar, à metamorfose
daquela Mata Hari de pacotilha num ser semelhante ao monstro de teta hercúlea
a rasgar listas telefónicas no circo que passeava na praia, no verão, os tigres
sarnosos da sua miséria de lantejoulas sem brilho. A mulher introduziu-se nos
lençóis como uma fatia de fiambre entre duas metades de um pão, e ele, atónito,
aproximou-se até tocar a medo na colcha à maneira de quem palpa com os
joanetes, em atitude de ballet friorento, a temperatura da piscina. A túlipa do
tecto revelava o planisfério de continentes desconhecidos que a humidade
desenhava na caliça. O grito impaciente É para hoje ó necas?, atirou-o sobre a
cama com a veemência sem réplica de um pontapé oportuno, e o psiquiatra
perdeu a virgindade ao penetrar, todo ele, num grande túnel peludo, afogando o
nariz na almofada semeada de ganchos de cabelo como uma árvore de Natal de
flocos de algodão, a que aderiam placas de caspa idênticas a grandes lâminas
gordurosas. Dois dias depois, pingando nas cuecas uma estearina que ardia,
obteve, através das injecções do farmacêutico, a certeza de que o amor é uma
doença perigosa que se cura com uma caixa de ampolas e lavagens de
permanganato morno no bidé da criada, para furtar a veemência das paixões à
curiosidade questionante da mãe.
Mas a essa hora inocente da tarde o Parque povoava-se apenas de japoneses
joviais cumprimentando-se uns aos outros numa linguagem de periquitos, a quem
os ciganos tentavam impingir o relógio de parede com a determinação de quem
lança pazadas de farinha Maizena para a goela de crianças renitentes, e os
japoneses, surpresos, miravam aquele estranho armazém de minutos de que o
pêndulo pendia de uma portinha de vidro como o coração cercado de espinhos
dos Cristos das pagelas, como se observassem, entre a curiosidade e o espanto,
um antepassado de feições vagamente semelhantes às dos ovnis cromados que
lhes cintilavam mensagens luminosas nos pulsos estreitos. O psiquiatra sentiu-se
de repente pré-histórico junto desses seres cujos olhos oblíquos eram lentes de
Leika e cujos estômagos haviam sido substituídos por carburadores de Datsun,
para sempre libertos de guinadas de azia e de gases que hesitavam entre o suspiro
e o arroto: não sei se é borborigmo se tristeza, pensava muitas vezes quando lhe
inchava o peito e lhe chegava à boca o balão de uma pastilha elástica sem
pastilha a evaporar-se pelos lábios num assobiozinho de cometa, e atribuía por
comodidade ao esófago o que de facto dizia respeito à confusão da sua angústia.
Encontrou o automóvel comprimido por duas stations enormes, elefantes de
marfim de amparar livros de tia-avó sustentando a contragosto um folheto
irrisório: Um dia destes compro um camião de dezasseis rodas e transformo-me
assim numa pessoa decisiva, resolveu o médico introduzindo-se no carro
minúsculo, de tablier repleto de cassetes que não tocavam e de embalagens de
medicamentos que haviam ultrapassado há muito o prazo de validade:
conservava tais inutilidades como outros guardam na gaveta o frasco com as
pedras da operação à vesícula, na esperança comovente de balizar o passado
daquilo que a vida abandona nas margens do seu curso, e corria de tempos a
tempos os dedos pelos remédios como os árabes afagam as suas contas
misteriosas. Eu sou um homem de uma certa idade, citou ele em voz alta como
sempre lhe acontecia quando Lisboa, num gesto meditativo de lagosta de viveiro,
lhe apertava as pinças em torno dos tendões do pescoço, e casas, árvores, praças
e ruas penetravam tumultuosamente na sua cabeça à moda de um quadro de
Soutine dançando um charleston carnívoro e frenético.
Girando o volante, para um e outro lado, como uma roda de leme, furtou-se
aos hipopótamos adormecidos das stations a erguerem do rio do asfalto os olhos
preguiçosos dos faróis, mamíferos tripulados por caixeiros-viajantes loquazes que
percorriam a província em safaris em que as aldeias indígenas cediam o lugar a
coretos afligidos por psoríases de ferrugem, em torno dos quais velhos de bengala
escarravam com autoridade entre as botas de carneira, e ingressou no carreiro
de formigas soluçado do trânsito, comandado do fundo pelas piscadelas de olho
sem sensualidade do semáforo. O verde luminoso aparentava-se à cor das íris da
filha mais crescida quando sorria de prazer sob os cabelos loiros em desordem,
minúscula feiticeira escarranchada na vassoura de zebra de pau do carrossel
durante viagens de uma alegria exultante: o psiquiatra achava-a então muito mais
velha do que na realidade era, e sentia-se, encostado à balaustrada de ferro,
pagando melancolicamente ao empregado, um cavalheiro idoso a tropeçar nas
ceroulas na direcção da meta próxima do cancro da próstata e da última algália,
pobres girândolas finais dos destinos anónimos.
Com o motor do carro a gaguejar segundo os arrancos de indigestão de uma
longa fieira de capots, ia procurando nos Prémios Valmor barrocos das esquinas,
reduzidos Jerónimos que escondiam no interior dinastias de coronéis na reserva e
de octogenárias mirabolantes, o consultório do dentista: não trabalhava nas tardes
de sexta-feira e fazia o possível por mobilar o longo túnel oco dos fins-de-semana
de pequenas actividades marginais, tal como as tias ocupavam o espaço
confortável das manhãs visitando, armadas de terços, boas palavras e moedas de
cinco tostões o que denominavam com orgulho proprietário de « os nossos
pobrezinhos» , criaturas acomodatícias a quem o papão inquietante do
Comunismo não assaltara ainda de perigosas dúvidas acerca da virtude da
Sãozinha. O médico acompanhara-as algumas vezes nesses raides sinistropiedosos
(Não se chegue muito a eles por causa das doenças) de que conservava
a recordação pungente do cheiro da fome e da miséria e de um paralítico que
rastejava na lama entre as barracas, de mão estendida para as tias que lhe
garantiam, de missal em riste, os faustos da eternidade na condição essencial de
respeitar escrupulosamente as pratas da nossa família.
No regresso a casa o psiquiatra era por seu turno catequizado (O menino reze
para não haver uma revolução que esta gentinha é bem capaz de nos matar a
todos), enquanto lhe explicavam que Deus, ser conservador por excelência,
assegurava o equilíbrio das instituições ofertando a quem não tinha criado
óptimas tísicas galopantes que poupavam a maçada quotidiana dos trabalhos
domésticos e dos calores da menopausa, ondas escarlates que lhes vinham
lembrar o facto vergonhoso de possuírem sob as saias as exigências, presentes
ainda que moribundas, de um sexo. E veio-lhe à ideia que quando principiara a
masturbar-se a mãe, intrigada, fora mostrar ao marido uma mancha nas cuecas,
na sequência do que recebera convocatória formal para se apresentar no
escritório, altar-mor da casa onde o pai estudava interminavelmente de
cachimbo nas gengivas doenças estranhas em livros alemães. Ser chamado ao
escritório constituía por si só o acto mais solene e terrível da sua infância, e
penetrava-se no augusto local de mãos atrás das costas e língua a enrolar-se já de
desculpas, numa resignação de vitelo no matadouro. O pai que escrevia sobre
uma tábua nos joelhos escorregou para ele um soslaio severo como um vestido
preto onde se entrevia a renda da saia de baixo de uma espécie de compreensão
furtiva, e disse na bela voz profunda com que recitava os sonetos de Antero
durante as anginas dos filhos, sentado na borda da cama, de livro na mão, solene
como se cumprisse um ritual iniciático:
Vê se tens cuidado e se te lavas.
E fora a primeira vez, pensou o médico, em que se apercebera fisicamente de
que o pai houvera sido novo, e se confrontara, olhando-lhe a cara magra e séria,
lavrada de ossos, e as órbitas agudas de um pardo fosforescente, com a evidência
angustiante de ter de por seu turno tropeçar de metamorfose em metamorfose na
direcção do insecto perfeito que não alcançaria nunca. Não vou ser capaz não
vou ser capaz não vou ser capaz repetia-se ele parado no tapete do escritório,
fitando a silhueta de quaker do pai, inclinado para o papel em atenções de
bordadeira. O futuro surgia-lhe sob a forma de um ralo escuro e sôfrego pronto a
sugar-lhe o corpo pela garganta ferrugenta, trajecto de cambulhada de esgoto
em esgoto rumo ao mar intratável da velhice, deixando na areia da vazante os
dentes e os cabelos das decrepitudes sem majestade. O retrato da mãe sorria na
estante brilhos melancólicos de rosácea como se a manhã da sua alegria
atravessasse a custo o vitral pálido dos lábios: também ela não conseguira,
oscilando indecisa entre a canasta e o Eça e perdendo-se sozinha num canto de
sofá em meditações enigmáticas, e porventura com os outros, o resto da tribo,
sucedera o mesmo, solitários ainda quando não sós, irremediavelmente
separados pelo infinito da desesperança. Reviu o avô na varanda da casa de
Nelas, nessas tardes da Beira em que o crepúsculo alonga sobre a serra brumas
lilases de filme bíblico, a observar os castanheiros na amargura de um almirante
no topo de um barco que naufraga, reviu a avó passeando para trás e para a
frente no corredor a febre da energia inútil em cuja chama ardia, os tios que o
quotidiano plastificara, a resignação morna das visitas, o silêncio que cobria de
súbito o rumor das conversas e durante o qual as pessoas se agitavam, aterradas,
presas de medos que se não exprimiam. Quem era capaz, interrogou-se o
psiquiatra procurando lugar para o carro perto do consultório do dentista e
arrumando-o às arrecuas junto a uma mercearia leprosa assassinada no seu
arroz e nas suas batatas por um supermercado gigantesco que oferecia aos
visitantes siderados comida americana já mastigada, embrulhada no celofane da
voz de Andy Williams a evaporar-se em hálitos sedutores de altifalantes
sabiamente distribuídos, quem era capaz de se oferecer a si próprio de si próprio
o perfil perfeito de um ginasta romeno imóvel no ar num exercício de argolas,
soltando bafos de pó de talco dos sovacos de Tarzan? Talvez que eu esteja morto,
pensou, certamente que morri de modo que nada de importante me pode já
acontecer, só a gangrena a roer o corpo por dentro, a cabeça oca de ideias, e lá
em cima, a superfície, a mão mole do vento a remexer, à procura, as copas dos
ciprestes, num frémito de folhas de jornal velho que se amarrota.
No corredor do consultório do dentista o zumbido da broca pairava invisível na
penumbra em insistências de varejeira, buscando o torrão de açúcar de um
molar desprevenido. A empregada magra e pálida como uma condessa
hemofílica estendeu-lhe os dedos transparentes do outro lado do balcão:
Está melhorzinho senhor doutor?
Pertencia à classe de portugueses que transformam os acontecimentos da vida
numa arrepiante sucessão de diminutivos: na semana anterior o médico escutara
esmagado o relato minucioso da gripe do filho da funcionária, criança perversa
que costumava entreter-se com as cavilhas do PBX, desviando para Boston ou
para o Nepal os uivos de dor dos abcessos lisboetas:
Teve um sofrimentozinho na barriguinha, pus-lhe o termómetro no bracinho,
os olhinhos do menino, coitadinho, andavam-me tão inflamadinhos que nem
calcula, levou uma semana a caldinhos de franguinho, ainda pensei em telefonar
ao paizinho do senhor doutor, nunca se sabe naquelas idades se o cerebrozinho
fica afectado, agora graças a Deus recuperou, prometi uma velinha a Santa
Filomena, deixei-o sentadinho na caminha, sossegadinho, a brincar aos
recepcionistas, já que não pode atender aqui finge que atende lá, ainda agora o
engenheiro Godinho, aquele senhor forte muito simpático não desfazendo, que
falou porque o incomodava o siso, estranhou não ouvir o meu Edgarzinho, estava
habituado a ele, até me disse Ó Dona Delmira então o rapaz?, Se Deus quiser
para a semana já o senhor engenheiro o tem aqui, disse eu, não é por ser meu
filho, que isso até me ficava mal, mas o senhor doutor não calcula o jeito que ele
tem para os auscultadores, em crescendo entra de certeza na Marconi, a minha
irmã repete sempre Nunca vi como o Edgar Filipe, ela trata-o por Edgar Filipe
que é o nome dele, Edgar do pai e Filipe do padrinho, nunca vi como o Edgar
Filipe para os PBX, e é verdade, a minha irmã é casada com um electricista e
essas coisas não lhe escapam, queira Nossa Senhora que a gripe lhe não atingisse
os ouvidinhos. Eu nem quero pensar que me dá logo uma tontura, ando a effortil
já vê, o médico da Caixa avisou-me A senhora acautele-se com a tensão, nos rins
não tem nada mas acautele-se com a tensão, de modos que fica a horinha do
senhor doutor marcada para sexta-feira.
Este tipo de conversa de caravela de filigrana, pensou o psiquiatra, provoca em
mim a exaltação admirativa que me despertam os naperons de crochet e as
pinturas de carrossel, amuletos de povo que agoniza numa paisagem conformada
de gatos em peitoris de rés-do-chão e de urinóis subterrâneos. O próprio rio vem
suspirar no fundo das retretes a sua asma sem grandeza: dobrado o cabo Bojador
o mar tornou-se irremediavelmente gordo e manso como os cães das porteiras, a
roçarem-nos nos tornozelos a submissão irritante dos lombos de capados.
Receando uma nova descrição de infortúnios de saúde o médico sumiu-se na
gruta da sala de espera à laia de caranguejo ameaçado por camaroeiro tenaz. Aí,
uma pilha de revistas missionárias amontoadas junto ao candeeiro de ferro
forjado que difundia em torno uma luz coada de órbita vesga, garantia-lhe a paz
inocente de um padre-nosso zulu. Arrumando as ancas no sofá de cabedal preto
gasto pelas incontáveis cáries que o haviam precedido, cavalo embalsamado em
forma de cadeira e porventura capaz de três ou quatro coices trôpegos, extraiu da
pilha de jornais virtuosos os restos de um semanário com uma freira mestiça a
rir na capa e em que um padre escocês narrava, num longo artigo ilustrado por
fotografias de zebras, a frutuosa evangelização de uma tribo de pigmeus, dois dos
quais, o diácono MFulum e o subdiácono TLoclu, preparavam hoje em Roma a
tese revolucionária que estabelecia a altura exacta da Arca de Noé a partir do
cálculo do comprimento médio dos pescoços das girafas: a etno-teologia
derrubava o catecismo. Dentro em breve um cónego da Arábia Saudita iria
demonstrar que Adão era um camelo, a serpente um pipe-line e Deus Pai um
xeique de óculos ray -ban comandando cardumes de anjos eunucos do Paraíso do
seu Mercedes de seis portas. Por instantes o psiquiatra pensou que o Aga Kan
constituía de facto a incarnação de Jesus Cristo, vingando-se dos aborrecimentos
do Calvário ao descer de ski as montanhas suíças na companhia da Miss Filipinas,
e os verdadeiros santos os sujeitos bronzeados que anunciam maços de Rothmans
King Size em atitudes viris de post-coito triunfal. Comparou-se mentalmente com
eles, e a lembrança do vulto que entrevia de tempos a tempos, de surpresa, nos
espelhos das pastelarias, magro, frágil, e possuindo como que uma espécie de
graciosidade inacabada, fê-lo confrontar-se pela milionésima vez com a
amargura da sua origem terrena, prometida a um futuro sem glória. Uma dor
constante torcia-lhe o queixal. Sentia-se sozinho e desarmado perante um xadrez
insensato cujas regras desconhecia. Necessitava com urgência de uma
educadora infantil que o ensinasse a andar, debruçando para ele seios generosos
e ardentes de loba romana contidos pelo tecido suave ao tacto de um soutien corde-
rosa. Ninguém o esperava em parte alguma. Ninguém se preocupava em
especial com ele. E o sofá de couro tornou-se a sua jangada de náufrago à deriva
pela cidade deserta.
Esta vertiginosa certeza de vazio que o visitava com mais frequência nas horas
matinais, quando se reagrupava penosamente em torno de si próprio nos
movimentos pastosos e engordurados de explorador que regressa de percursos
estelares para se achar, rameloso, em dois metros de lençóis em desordem,
dissolveu-se um pouco ao escutar passos aproximarem-se no corredor do
consultório saudados pela voz da hemofílica (Boa tarde menina Edite tem que
esperar um bocadinho na sala) a sair do cubículo no murmúrio de reza chorosa
de quem debita o Corão de uma fresta de mesquita. Erguendo o queixo dos
pigmeus iluminados pelo exemplar percurso espiritual de São Luís Gonzaga, deu
com uma rapariga ruiva que se foi sentar na cadeira gémea da sua, do lado
oposto do candeeiro, e que após um primeiro soslaio avaliador, breve e atento
como a língua de um holofote, pousou nele os olhos claros no aceno de pestanas
com que as rolas se anicham nos cotovelos das estátuas. No prédio fronteiro uma
mulher muito gorda sacudia um tapete entre gerânios, enquanto o vizinho de
cima, em camisola interior, lia o jornal desportivo num banco de lona na
varanda. Eram duas e um quarto da tarde. A rapariga ruiva tirou da carteira um
livro da colecção Vampiro marcado com um bilhete de metropolitano, cruzou as
pernas como as lâminas de uma tesoura sobrepondo-se, e a curva do peito do pé
dela assemelhava-se ao das bailarinas de Degas suspensas em gestos a um tempo
instantâneos e eternos, envoltos no vapor de algodão da ternura do pintor: há
sempre quem se extasie quando as pessoas voam.
Olá, disse o médico no tom em que Picasso se deve ter dirigido à sua pomba.
As sobrancelhas da rapariga ruiva convergiram uma para a outra até
formarem o acento circunflexo do telhado de um quiosque que os ramos de
plátano das madeixas soltas tocavam de leve:
Era na época em que as dores de dentes falavam, disse ela. Possuía o tipo de
timbre que se imagina que Marlene Dietrich teria na juventude.
Não me dói nenhum dente porque os uso todos postiços, informou o médico.
Venho só substituí-los por barbas de tubarão para engolir melhor os peixes do
aquário da minha madrinha.
Eu estou aqui para assassinar o dentista, declarou a rapariga ruiva. Acabo de
aprender a receita no Perry Mason.
Na altura do liceu resolvias de certeza num rufo as equações do segundo grau,
pensou o psiquiatra a quem as mulheres pragmáticas assustavam: o seu domínio
fora sempre o do sonho confuso e vagueante, sem tábua de logaritmos que o
descodificasse, e acomodava-se a custo à ideia de uma ordenação geométrica da
vida, dentro da qual se sentia desorientado como formiga sem bússola. Daí a sua
sensação de existir apenas no passado e de os dias deslizarem às arrecuas como
os relógios antigos, cujos ponteiros se deslocam ao contrário em busca dos
defuntos dos retratos, lentamente aclarados pelo ressuscitar das horas. Os avós do
Brasil estendiam para fora do álbum as barbas amarelas, saias de balão
inchavam nas gavetas das fotografias, primos longínquos, de polainas,
conversavam na sala, o senhor Barros e Castro recitava Gomes Leal numa
entoação preciosa. Quantos anos tenho?, interrogou-se ele procedendo à
periódica verificação de si próprio que lhe permitia um entendimento precário
com a realidade exterior, substância viscosa em que os seus passos se
afundavam, perplexos, sem destino. As filhas, o bilhete de identidade e o lugar no
hospital ancoravam-no ainda ao quotidiano mas por tão finos fios que prosseguia
pairando, sementinha peluda de sopro em sopro, a hesitar. Desde que se separara
da mulher perdera lastro e sentido: as calças sobravam-lhe na cintura, faltavamlhe
botões nos colarinhos, principiava pouco a pouco a assemelhar-se a um
vagabundo associal em cuja barba cuidadosamente feita se detectavam as cinzas
de um pretérito decente. Ultimamente, observando-se ao espelho, achava que as
próprias feições se desabitavam, as pregas do sorriso davam lugar às rugas do
desencorajamento. No seu rosto havia cada vez mais testa: em breve faria a
risca na orelha e cruzaria sobre a calva seis ou sete farripas pegajosas de fixador,
numa ilusão ridícula de mocidade. Lembrou-se de súbito do suspiro saudoso da
mãe:
Os meus filhos são tão bonitos até aos trinta anos.
E desejou desesperadamente retornar à linha de partida, em que as promessas
de vitória são não apenas permitidas mas obrigatoriamente desejáveis: o campo
dos projectos que se não realizam nunca era um pouco a sua pátria, o seu bairro,
a casa de que conhecia de cor os mínimos recantos, as cadeiras coxas, os
insectos, os cheiros íntimos, as tábuas que estalavam.
Quer jantar comigo esta noite?, perguntou à rapariga ruiva que aperfeiçoava
as suas intenções criminosas através das medíocres deduções de Perry Mason,
alinhando no tribunal silogismos de implacável estupidez.
A hemofílica chamou-o do corredor: tomou apressadamente nota do número
de telefone num pedaço de papel arrancado da página da revista missionária em
que um grupo de sacristães canibais comungavam sob espécies com evidente
apetite (Às sete? Às sete e meia? Chega do cabeleireiro às sete e meia?) e dirigiuse
para o gabinete do dentista a imaginar coxas ruivas espalhadas nos lençóis no
abandono contente de depois do amor, o púbis sardento, o odor da pele. Sentou-se
na cadeira dos suplícios, cercada de tenebrosos instrumentos, brocas, ganchos,
estiletes, ferros, uma gengiva num prato, entregue à excitante tarefa de fantasiar
o apartamento dela: almofadas no chão, livros do Círculo dos Leitores nas
prateleiras, bibelots de mulher só recuperando a inocência através de bichos de
peluche, fotografias celebrando idílios defuntos, uma amiga de óculos e com má
pele a discutir a Esquerda entre fumaças antiburguesas de Três Vintes. Nos seus
acessos de misoginia o médico costumava classificar as mulheres consoante o
tabaco que usavam: a raça Marlboro-sem-ser-de-contrabando lia Gore Vidal,
passava o verão em Ibiza, achava Giscard dEstaing e o príncipe Filipe muito
pêssegos e a inteligência uma maçada esquisita; o tipo Malboro-de-contrabando
interessava-se por design, bridge e Agatha Christie (em inglês), frequentava a
piscina do Muxaxo e considerava a cultura um fenómeno vagamente divertido
quando acompanhado do amor do golfe; o género SGGigante apreciava Jean
Ferrat, Truffaut e o Nouvel Observateur, votava Socialista e mantinha com os
homens relações ao mesmo tempo emancipadas e iconoclastas; a classe SG
Filtro tinha o poster de Che Guevara na parede do quarto, nutria-se
espiritualmente de Reich e de revistas de decoração, não conseguia dormir sem
comprimidos e acampava aos fins-de-semana na lagoa de Albufeira conspirando
acerca da criação de um núcleo de estudos marxistas; o estilo Português-Suave
não se pintava, cortava as unhas rentes, estudava Anti-Psiquiatria e agonizava de
paixões oblíquas por cantores de intervenção feios, de camisa da Nazaré
desabotoada e noções sociais peremptórias e esquemáticas; por fim, o lumpen do
tabaco de mortalha enlanguescia ao som dos Pink Floy d em gira-discos de pilhas
junto à Suzuki do amigo de ocasião, adolescentes fazendo reclame aos
amortecedores Koni nas costas dos blusões de plástico. À margem desta
taxonomia simplificada situava-se o grupo da Boquilha, menopáusicas donas de
boutiques, de antiquários e de restaurantes em Alfama, tilintantes de pulseiras
marroquinas, saídas directamente dos esforços dos institutos de beleza para os
braços de homens demasiado novos ou demasiado velhos, que lhes ajardinavam
as melancolias e as exigências em duplexes a Campo de Ourique, inundados da
voz de Ferré e dos bonecos da Rosa Ramalho, e onde as lâmpadas indirectas
tingiam os seios gastos de uma penumbra púdica e favorável. Tu, pensou ele
referindo-se à mulher enquanto o dentista, espécie de Mefistófeles sarcástico, lhe
apontava às pupilas uma tremenda luz de ringue de boxe, tu, pensou, escapaste
sempre à derisão e à ironia em que procuro esconder a ternura de que me
envergonho e o afecto que me apavora, talvez porque desde o princípio tenhas
topado que sob o desafio, a agressividade, a arrogância, se ocultava um apelo
aflito, um grito de cego, a mirada lancinante de um surdo que não percebe e
busca em vão decifrar, nos lábios dos outros, as palavras apaziguadoras de que
necessita. Vieste sempre sem que te chamasse, amparaste sempre o meu
sofrimento e o meu pavor, crescemos ilharga a ilharga aprendendo um com o
outro a comunhão do isolamento partilhado, como quando parti, sob a chuva,
para Angola, e os teus olhos secos se despediram sem falar, pedras escuras
guardando dentro como que um sumo de amor. E recordou o corpo deitado na
cama nas tardes de Marimba, sob as mangueiras enormes pejadas de morcegos
que esperavam a noite pendurados pelos pés à maneira de guarda-chuvas
carnívoros (anjos dos ratos, chamava-lhes uma amiga), e a filha mais velha, que
então começava a andar, tropeçando para eles agarrada às paredes. Não
aguentamos muitos desafios, achou o psiquiatra no instante em que o dentista lhe
enganchava o aspirador no canto da boca, não aguentamos muitos desafios e
acabamos quase sempre por fugir aterrados à primeira dificuldade que aparece,
vencidos sem combate, cães magros que rondam traseiras de hotel no trote
miúdo das fomes por saciar. O som da broca que se aproximava numa
ferocidade de vespa despertou-o para a realidade da dor iminente quando aquele
minúsculo Black and Decker lhe tocasse o queixal. O médico segurou os braços
da cadeira a mãos ambas, apertou os músculos da barriga, fechou as pálpebras
com força, e tal como costumava fazer diante do sofrimento, da angústia e da
insónia, pôs-se a imaginar o mar.
As ruas cá fora seguiam com um passeio ao sol e outro à sombra como coxos
em sapatos desiguais, e o médico demorou-se à porta do consultório a palpar as
mandíbulas doridas para se certificar de que continuava a existir dos olhos para
baixo: desde que vira em África órbitas de crocodilo à deriva no rio, em busca
dos corpos que perderam, que temia soltar-se de si próprio para flutuar, sem
lastro de intestinos, em torno dos cegos que desafinam as esquinas com os seus
acordeões reumáticos de Chopins do pasodoble. Esta cidade que era a sua
oferecia-lhe sempre, através das suas avenidas e das suas praças, o rosto
infinitamente variável de uma amante caprichosa que as árvores escureciam do
cone de sombra dos remorsos melancólicos, e acontecia-lhe tropeçar nos
Neptunos dos lagos como um bêbedo se encontra, ao sair de um candeeiro, com
o queixo feroz de um polícia sem humor, culturalmente alimentado pelos erros
de gramática do cabo da esquadra. Todas as estátuas apontavam o dedo na
direcção do mar, convidando à Índia ou a um suicídio discreto, consoante o
estado de alma e o nível do desejo de aventura no depósito da infância: o
psiquiatra observava os rebocadores-moços de fretes empurrando enormes
pianos-petroleiros, e delegava neles o esforço de corpo e espírito que desistira de
fazer, sentado no interior de si próprio como os esquimós velhos abandonados no
gelo, esvaziados de sentimentos pela agonia boreal que os habita. Ao voltar da
guerra, o médico, habituado entretanto à mata, às fazendas de girassol e à noção
de tempo paciente e eterna dos negros, em que os minutos, subitamente elásticos,
podiam durar semanas inteiras de tranquila expectativa, tivera de proceder a
penoso esforço de acomodação interior a fim de se reacostumar aos prédios de
azulejo que constituíam as suas cubatas natais. A palidez das caras compelia-o a
diagnosticar uma anemia colectiva, e o português sem sotaque surgia-lhe tão
desprovido de encanto como um quotidiano de escriturário. Sujeitos apertados
em cilícios de gravatas agitavam-se à sua volta em questiúnculas azedas: o deus
Zumbi, senhor do Destino e das Chuvas, não passara o equador, seduzido por um
continente onde até a morte possuía a impetuosa alegria de um parto triunfal.
Entre a Angola que perdera e a Lisboa que não reganhara o médico sentia-se
duplamente órfão, e esta condição de despaisado continuara dolorosamente a
prolongar-se porque muita coisa se alterara na sua ausência, as ruas dobravamse
em cotovelos imprevistos, as antenas de televisão espantavam os pombos na
direcção do rio obrigando-os a um fado de gaivotas, rugas inesperadas conferiam
à boca das tias expressões de Montaignes desiludidos, a multiplicação de eventos
familiares empurrava-o para a pré-história do folhetim de que dominava apenas
os acidentes paleolíticos. Primos que abandonara em calções resmungavam nas
barbas incipientes uma revolta que o transcendia, celebravam-se defuntos que
deixara a coleccionar as obrigações do Tesouro para as quais haviam deslocado o
apetite infantil de amontoar caricas: no fundo era como se, através dele, se
repetisse um Fr. Luís de Sousa de blazer.
De modo que nas tardes livres cavalgava o pequeno automóvel amolgado e
procedia com método à verificação da cidade, bairro por bairro e igreja por
igreja, em peregrinações que terminavam invariavelmente na Rocha do Conde
de Óbidos, da qual largara um dia para a aventura imposta e com quem
mantinha, apesar de tudo, a intimidade respeitosa e masoquista que as vítimas
reservam aos carrascos reformados. O consultório do dentista localizava-se
numa zona de Lisboa incaracterística como uma dieta de hepatite, onde os
vendedores de flores pousavam no passeio os cestos das suas primaveras
moribundas a difundirem no ar uma atmosfera de velório, lembrando-lhe a noite
em que fora jantar perto do Castelo de São Jorge, num restaurante francês em
que o preço dos pratos obrigava a consumir as pastilhas para a azia que a
suavidade do filet mignon poupava. Eram os santos populares e a cidade vestia-se
de uma espécie de carnaval místico-profano idêntico a uma mulher nua a cintilar
jóias de vidro: hálitos de marchas borbulhavam nos algerozes, notários
funebremente divertidos invadiam Alfama de ademanes de Drácula. O largo do
restaurante, suspenso sobre o rio à maneira de um zepelim de casas baixas,
torcidas de cólicas como nos quadros de Cézanne, povoava-se de árvores
concentrando em si uma imensa quantidade de trevas, sombras que o vento
restolhava como trocos na algibeira, moedas de ramos e de folhas grávidas de
pássaros que dormiam. Ingleses magros como pontos de exclamação sem
veemência desembarcavam de táxis em cujos motores ronronavam vocações de
traineiras contrariadas. Entre as malhas do ruído pressentia-se a textura côncava
do silêncio, o mesmo que habitava, ameaçador, o receio do escuro herdado dos
pânicos da infância, e o psiquiatra, intrigado, procurava a sua origem de janela
em janela até encontrar, ao rés-do-chão, uma porta escancarada para uma sala
vazia, sem gravuras nem cortinas, mobilada apenas por um esquife coberto por
um pano preto, assente sobre dois bancos, e por uma mulher de meia-idade de
lágrimas paradas nas bochechas, criatura do Couraçado Potemkine, estátua
trágica do desgosto.
Se calhar é isto a vida, pensou o médico saltando um cesto de crisântemos para
alcançar o carro afogado em corolas como um cadáver de comendador, um
defunto ao centro e o Santo António à volta, o caroço da tristeza rodeado da polpa
jovial de sardinhas assadas e foguetório, e achou que a dor de dentes despertava
em si as imagens pífias de Modas & Bordados que constituíam o verdadeiro
fundo da sua alma: quando estava aflito reapareciam, intactos, o mau gosto, a fé
no Senhor dos Passos e o desejo de se marsupializar num regaço qualquer,
materiais genuínos que persistiam sob o verniz do desdém. Ligou o motor para se
evadir da sua ilha de pétalas meladas, da qual pulou como um golfinho de um
lago num soluço de bielas, e desceu para o Martim Moniz espalhando caules,
idêntico à Vénus de Botticelli redesenhada por Cesário Verde: o Sentimento Dum
Ocidental era um pouco a sua roupa interior, ceroulas de alexandrinos nunca
despidas, mesmo para os minutos ardentes de uma relação furtiva.
A avenida Almirante Reis, eternamente cinzenta, pluviosa e triste ao sol de
julho, balizada alternadamente por ardinas e inválidos, trotava na direcção do
Tejo entre duas gengivas de prédios cariados, como um cavalheiro apertado em
sapatos novos para a paragem do eléctrico. Industriais de olho alerta impingiam
relógios de contrabando nas esplanadas a que os engraxadores, acocorados em
penicos de tábuas, conferiam uma dimensão insólita de creche. Em cafés
gigantescos como piscinas vazias desempregados solitários aguardavam o Juízo
Derradeiro em frente de galões imemoriais e de torradas terciárias, congelados
em atitudes de espera. Salões de cabeleireiro habitados de baratas propunham às
donas de casa em mal de imaginação soluções capilares imprevistas, a que
retrosarias poeirentas dariam o toque final de soutiens de renda, mosquiteiros
torácicos capazes de rejuvenescerem de erecções formidáveis vinte e cinco anos
de resignação conjugal. O psiquiatra gostava das pequenas transversais que
alimentavam aquele rio majestoso e lento de capelistas suplementares e de
sapatarias suburbanas, empurrando para a Baixa um universo de província,
pedaços da Póvoa de Santo Adrião à deriva por Lisboa, cervejarias inesperadas
alcatifadas de tremoços: respirava melhor longe das grandes lojas, dos caixeiros
competentes mais bem vestidos do que ele, dos regicidas a cavalo gesticulando
ímpetos de bronze. Em miúdo demorava-se longas horas na carvoaria vizinha da
casa dos seus pais, onde um titã enfarruscado fabricava briquetes e ameaçava a
mulher de tareias monstruosas, e acontecia-lhe ao almoço suspender o garfo a
fim de escutar o eco surdo desses amores enérgicos: se pudesse escolher
barricar-se-ia sem dúvida de cómodas quinane e de jarras de rosas de plástico, e,
se doente, exigiria que o oxigénio hospitalar se perfumasse a alho.
Na Praça da Figueira, onde a existência próxima das gaivotas se começa a
suspeitar pelo desassossego dos pardais, do mesmo modo que a sombra de um
sorriso anuncia uma reconciliação iminente, o molar cessara por completo de
doer-lhe, domesticado pelas manobras do dentista, que o reduzira à mediocridade
do anonimato: naquele profissional da broca havia qualquer coisa de prefeito de
colégio, pronto a amaciar à paulada as veleidades dos originais. D. João IV, herói
problemático, fitava de órbitas ocas um renque de varandas, escritórios de
representações representando o bolor, o tabaco frio e a humidade. Adivinhavamse
autoclismos que não funcionam atrás de cada parede, inválidos do comércio
em cada adolescente hirsuto, menopausas desesperadas nas mulheres-polícias. O
médico alcançou a rua do Ouro, asséptica de cambistas, direita como as
intenções de um cónego virtuoso, e dirigiu-se para o parque de estacionamento
junto ao rio, onde, desde sempre, passeara a sua solidão, porque pertencia à
classe de pessoas que só sabem sofrer acima dos seus meios. Aí, num banco de
ripas, lera Marco Aurélio e Epicteto tardes a fio para conjurar um distante amor
perdido. As ondas enroscavam-se-lhe aos pés numa fraternidade canina, e era
como se pudesse lavar-se das injustiças do mundo a partir dos tornozelos.
Imobilizou o automóvel ao lado de uma rulote de matrícula alemã, em cuja
sujidade se decifravam frémitos de aventura temperados pelo recato doméstico
das cortinas de bolinhas, e desceu o vidro para cheirar a água lodosa onde
homens e mulheres, enterrados até aos joelhos, enchiam de iscos latas
ferrugentas. Os ceifeiros da vazante, disse-se ele, garças que o fascismo criou,
aves pernaltas da fome e da miséria. Os versos de Sophia Andresen vieram-lhe à
memória num rufar de veias em batalha:
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra a serpente e a cobra
O porco e o milhafre
O trânsito trambolhava nas suas costas, empurrado pelas mangas imperiosas
dos sinaleiros empoleirados em peanhas de circo, domadores dotados de gestos
aéreos de bailarinos. Lojas de pássaros esvoaçavam entre casas de comida e
drogarias com molhos de vassouras pendurados do tecto como frutos peludos, e
algumas mansardas subiam também, verticalmente, no céu, a golpes de rémiges
da roupa que secava de varanda a varanda, asas de camisas desbotando-se
contra as bochechas das fachadas. O edifício maciço do Arsenal enverdecia de
musgos marinhos, saudoso de impossíveis naufrágios. Mais longe um cemitério
estendia a toalha branca dos jazigos semelhantes a dentes de leite sobre uma
linha de árvores e de flechas de igreja: as quatro da tarde inchavam nos relógios
municipais, cujas badaladas se diriam contemporâneas de Fernão Lopes,
tranquilas como as tragédias mortas. Os comboios do Cais do Sodré arrastavam
para o Estoril os primeiros jogadores e os últimos turistas, noruegueses de
indicador perdido no mapa da cidade, e as ruas e o rio principiavam a confluir na
mesma paz de verão, horizontal, que as fábricas do Barreiro coloriam de fumo
ver melho operário, antecipação do poente. Um barco de carga subia a barra
perseguido por uma coroa de gaivotas vorazes, e o psiquiatra pensou em como as
filhas apreciariam estar ali com ele naquele momento, agitando-se numa chuva
de perguntas extasiadas. O desejo de as ver misturou-se a pouco e pouco com os
corpos dos ceifeiros da margem, que se chamavam em gritos chegados a ele
distorcidos ou abafados pela refracção do ar, reduzidos a cintilações de ecos que
o vento moldava como véus de sons, com o peso de Lisboa colado às suas costas
à maneira de uma corcunda de prédios, e os cães vagabundos a farejarem em
vão nas redondezas a mensagem de urina do pequinês ideal. Os minúsculos rostos
delas possuíam o doloroso contorno do seu remorso, que aos fins-de-semana
tentava em vão subornar de permissibilidade excessiva e de ternura viscosa, rei
mago pródigo em chocolates que lhe não exigiam. Saber que à noite não estaria
com elas para o beijo do adeus, pesado já da lassidão do sono, que não iria em
pontas dos pés afugentar-lhes os pesadelos segredando-lhes ao ouvido as palavras
de amor do vocabulário secreto comum ao Pato Donald e à Branca de Neve, que
de manhã a sua ausência na cama de casal se transformara num hábito aceite
sem surpresa, tornava-o culpado do pavoroso crime de as abandonar. Podia
apenas, durante a semana, espreitá-las às ocultas como um espião, ser o José
Matias de duas Elisas irremediavelmente perdidas, que prosseguiam trajectos
divergentes do seu, pequeninas parcelas do seu sangue que acompanhava,
dilacerado, de uma distância cada vez maior. Decerto que a sua deserção as
decepcionara e confundira, que esperavam ainda o seu regresso, os passos na
escada, os braços abertos, o riso de outrora. A frase do pai rodopiou-lhe em
espiral pela cabeça
A única coisa de que tenho pena é das tuas filhas
carregada da contida emoção com que se adivinhava nele o pudor do afecto
que só depois da adolescência aprendera a conhecer e a admirar, e achou-se
reles e maligno como um animal doente, reduzido às asfixiantes proporções de
um presente sem futuro. Fizera da vida uma camisola de forças em que se lhe
tornava impossível mover-se, atado pelas correias do desgosto de si próprio e do
isolamento que o impregnava de uma amarga tristeza sem manhãs. Um relógio
qualquer bateu a meia das quatro horas: se conduzisse suficientemente depressa
chegaria a tempo para a saída da escola, acto libertador por excelência, vitória
do riso sobre a estupidez cansada: algo nele, vindo do mais remoto da memória,
teimava em garantir-lhe, contrariando o terrível peso oficial das tabuadas, que
existe um quadro preto em qualquer parte, quem sabe se no sótão do sótão ou na
cave da cave, a afirmar que dois e dois não são quatro.
Oculto pela arca frigorífica de gelados a ronronar sonolências de urso polar
contra a montra de uma pastelaria, o psiquiatra, curvado, espiava o portão do
colégio em atitude de pele-vermelha que aguarda, atrás do seu penedo, a
chegada dos batedores brancos. Deixara o fiel cavalo preto trezentos ou
quatrocentos metros acima, perto da mata de Benfica e das suas rolas obesas,
falcões reciclados pela necessidade de sobrevivência citadina que obriga o
Grande Manitu a disfarçar-se, ele próprio, de Senhor dos Passos, e viera
rastejando de plátano em plátano, observado com espanto pelos vendedores
ambulantes de porta-moedas e de atacadores, irmãos guerreiros cuja actividade
bélica se resumia a fugas trôpegas à aproximação da polícia, empurrando
adiante de si os tabuleiros de escalpes das bugigangas inúteis. Agora, ao abrigo
dos Olás de chocolate, perscrutando o horizonte da rua com pupilas de águia
míope, o médico lançava no ar da pradaria os sinais de fumo de um cigarro
nervoso que traduzia, sílaba a sílaba, a dimensão da sua ansiedade.
No prédio em frente daquele em que se escondia, morava entre gatos e
fotografias dedicadas de bispos em voga uma tia velha acolitada pela criada
zarolha, veneráveis squaws da tribo familiar, visitadas no Natal por excursões de
parentes incrédulos, surpreendidos pelas suas combativas longevidades.
Secretamente o psiquiatra não lhes perdoava o facto de sobreviverem à avó que
amara muito e cuja recordação o enternecia ainda: quando se achava mais em
baixo ia a sua casa, entrava na sala, informava sem vergonha:
Venho aqui para me fazer festas.
E pousava-lhe a cabeça no colo para que os dedos dela, ao tocarem-lhe a nuca,
lhe apaziguassem as raivas sem motivo e o desejo sôfrego de ternura: dos
dezasseis anos para cá as únicas alterações importantes de que se dava conta
consistiam na morte das três ou quatro pessoas que nutriam por ele um afecto
constante, à prova das guinadas dos seus caprichos. O seu egoísmo media a
pulsação do mundo consoante a atenção que recebia: só tarde demais acordara
para os outros, quando a maior parte lhe havia voltado as costas enfastiados pela
estupidez da sua arrogância e pelo sarcasmo desdenhoso em que cristalizava a
timidez e o medo. Desprovido de generosidade, de tolerância e de doçura, apenas
se preocupava em que se preocupassem consigo, fazendo de si mesmo o tema
único de uma sinfonia monótona. Chegava a perguntar aos amigos como
conseguiam existir longe da sua órbita egocêntrica, de que os romances e
poemas que perpetrava sem os escrever formavam como que um
prolongamento narcísico sem conexão com a vida, arquitectura oca de palavras,
design de frases esvaziadas de emoção. Espectador extasiado do próprio
sofrimento, projectava reformular o passado quando não era capaz de lutar pelo
presente. Cobarde e vaidoso, fugia de se olhar nos olhos, de entender a sua
realidade de cadáver inútil, e de iniciar a angustiosa aprendizagem de estar vivo.
Cachos de mães da sua idade (facto que continuava a surpreendê-lo por
dificuldade em reconhecer que envelhecia) principiavam a agrupar-se ao portão
do colégio em agitações de galinhas poedeiras, e o médico pensou em subir ao
andar da tia idosa onde, entrincheirado atrás do retrato do Cardeal Patriarca que
se parecia com um palhaço rico, lograria observar a saída das aulas de um
ângulo fácil de franco-atirador, disparando saudade pelos canos duplos das
olheiras. Mas a órbita cega da criada, que o perseguiria implacavelmente de gato
em gato e de bispo em bispo, devassando-lhe o interior à luz leitosa das cataratas,
obrigou-o a desistir do seu projecto de Oswald: sabia-se demasiado frágil para
suportar um interrogatório silencioso contrabalançado pelas manifestações de
júbilo das velhas, que teimariam decerto em repetir-lhe pela milionésima vez a
história tormentosa do seu nascimento, criança roxa sufocada de secreções ao
lado da progenitora com eclampsia. Resignado à trincheira da pastelaria, cuja
máquina de café relinchava vapor pelas narinas impacientes de puro-sangue de
alumínio, apoiou os cotovelos no icebergue eléctrico da geleira como um
esquimó abraçado ao seu igloo, e continuou à espera ao lado de um mendigo sem
pernas, pousado numa manta, que estendia dois dedos à altura dos joelhos
alheios.
Como em África, pensou ele, exactamente como em África, aguardando a
chegada miraculosa do crepúsculo no jango de Marimba, enquanto as nuvens
escureciam o Cambo e a Baixa do Cassanje se povoava do eco dos trovões. A
chegada do crepúsculo e a do correio que a coluna trazia, as tuas compridas
cartas húmidas de amor. Tu doente em Luanda, a miúda longe de ambos, e o
soldado que se suicidou em Mangando, deitou-se na camarata, encostou a arma
ao queixo, disse Boa noite e havia pedaços de dentes e de osso cravados no zinco
do tecto, manchas de sangue, carne, cartilagens, a metade inferior da cara
transformada num buraco horrível, agonizou quatro horas em sobressaltos de rã,
estendido na marquesa da enfermaria, o cabo segurava o petromax que lançava
nas paredes grandes sombras confusas. Mangando e os latidos dos cabíris nas
trevas, cães esqueléticos de orelhas de morcego, madrugadas de estrelas
desconhecidas, a soba de Dala e os seus gémeos doentes, o povo para a consulta
nos degraus do posto a tiritar de paludismo, picadas destruídas pela violência da
chuva. Uma ocasião estávamos sentados a seguir ao almoço perto do arame,
naquela espécie de lápide funerária com os escudos dos batalhões pintados, e eis
que surgiu da estrada da Chiquita um espampanante carro americano coberto de
pó com um senhor careca dentro, um civil sozinho, nem pide, nem
administrativo, nem caçador, nem brigada da lepra, mas um fotógrafo, um
fotógrafo munido dessas máquinas de tripé das praias e das feiras, inverosímil de
arcaica, propondo-se tirar o retrato a todos, isolados ou em grupo, presentes para
enviar por carta à família, recordações da guerra, sorrisos desbotados do exílio.
Não havia comida para bebés em Malanje e a nossa filha tornou a Portugal
magra e pálida, com a cor amarelada dos brancos de Angola, ferrugenta de
febre, um ano a dormir em cama de bordão de palmeira junto das nossas camas
de quartel, estava a fazer uma autópsia ao ar livre por via do cheiro quando me
chamaram porque desmaiaras, encontrei-te exausta numa cadeira feita de
tábuas de barrica, fechei a porta, acocorei-me a chorar ao pé de ti repetindo Até
ao fim do mundo, até ao fim do mundo, até ao fim do mundo, certo da certeza de
que nada nos podia separar, como uma onda para a praia na tua direcção vai o
meu corpo, exclamou o Neruda e era assim connosco, e é assim comigo só que
não sou capaz de to dizer ou digo-to se não estás, digo-to sozinho tonto do amor
que te tenho, demais nos ferimos, nos magoámos, nos tentámos matar dentro de
cada um, e apesar disso, subterrânea e imensa, a onda continua e como para a
praia na tua direcção o trigo do meu corpo se inclina, espigas de dedos que te
buscam, tentam tocar-te, se prendem na tua pele com força de unhas, as tuas
pernas estreitas apertam-me a cintura, subo a escada, bato ao trinco, entro, o
colchão conhece ainda o jeito do meu sono, penduro a roupa na cadeira, como
uma onda para a praia como uma onda para a praia como uma onda para a
praia na tua direcção vai o meu corpo.
A Teresa, a empregada, surgiu da avenida Grão Vasco onde as folhas das
amoreiras transformam o sol numa lâmpada verde de aquário, cintilante de
reflexos tamisados, de tal modo que as pessoas dão por vezes a sensação de
flutuarem na luz em atitudes sem arestas de peixes, e passou por ele no seu passo
lento de vaca sagrada, que o sorriso desprovido de crueldade adoçava. Se a
Teresa não me topou ninguém me topa, pensou o médico encostando-se mais ao
icebergue até sentir na barriga o contacto liso do esmalte: um pequeno esforço
suplementar e atravessaria a parede da geleira, casulo em que as larvas humanas
correm o risco de se metamorfosearem em cassata: ser comido à colher num
jantar de família afigurou-se-lhe de súbito um destino agradável. O mendigo da
manta, que contava os lucros, julgou adivinhar-lhe as intenções:
Se vais palmar saca também aqui para o chichas. De baunilha que me não
fode a úlcera.
Uma senhora que abandonava a pastelaria com um embrulho suspenso de cada
dedo considerou apavorada aquele esquisito par de criminosos que tramavam um
sinistro roubo de gelados, e afastou-se a correr no sentido da Damaia temendo
talvez que a ameaçássemos com pistolas de rebuçado. O mendigo, em quem
morava um esteta, considerou-lhe com agrado a vastidão das coxas:
Pandeiro de primeira.
E autobiográfico:
Antes do acidente comungava uma todos os domingos. Gajas do Arco do
Cego pelo preço da uva mijona que as galdérias agora estão piores que o
bacalhau.
Um rebuliço de crianças junto ao portão da escola anunciou ao psiquiatra o fim
das aulas: o mendigo remexeu-se, zangado, na sua manta:
Sacanas dos putos roubam-me mais do que me dão.
E o médico ponderou se essa frase irritada não conteria em si os germes de
uma verdade universal, o que o levou a olhar para o seu sócio com um respeito
novo: Rembrandt, por exemplo, não acabou muito mais próspero, e não se está
livre de encontrar um Pascal no cobrador da água: António Aleixo vendia
cautelas, Camões escrevia cartas na rua para os que não sabiam ler, Gomes Leal
compunha alexandrinos no papel selado do notário onde trabalhava. Dezenas de
prémios Nobel em blue-jeans desafiam a polícia nas manifestações maoístas:
nesta época estranha a inteligência parece estúpida e a estupidez inteligente, e
torna-se salutar desconfiar de ambas por questão de prudência, tal como, em
garoto, o aconselhavam a afastar-se dos senhores excessivamente amáveis que
abordam os meninos na cerca dos liceus com um brilho estranho nos óculos.
O passeio enchia-se de alunos pastoreados pelas mães que os enxotavam para
casa como os vendedores de perus da Praça da Figueira na véspera do Natal, e o
médico pensou com melancolia em como é difícil educar os adultos, tão pouco
atentos à importância vital de uma pastilha elástica ou de uma caixa de plasticina,
e tão preocupados com a ninharia idiota dos bons modos à mesa, adorando
escrever mensagens obscenas no mármore dos urinóis e detestando inofensivos
riscos a lápis na parede da sala. O mendigo, que entenderia decerto essas e outras
elucubrações, guardava a receita no bolso do colete, a salvo das garras rapaces
dos estudantes, e puxava de um atestado de tuberculose para demover a seu
favor os contribuintes indecisos.
Nisto avistou as filhas no meio de um grupo de meninas uniformizadas de saia
de xadrez, os cabelos loiros e lisos da mais velha, os caracóis castanhos da mais
nova, abrindo caminho uma atrás da outra na direcção da Teresa, e os seus
intestinos, de repente demasiado grandes para o umbigo, incharam dos
cogumelos da ternura. Apetecia-lhe correr para elas, segurar-lhes na mão e
partirem os três, como no final do Grand Meaulnes, a caminho de gloriosas
aventuras. O futuro em panavision estendia-se-lhe adiante, real e irreal como
uma história de fadas atapetada pela voz de Paul Simon:
We were married on a rainy day
The sky was y ellow
And the grass was gray
We signed the papers
And we drove away
I do it for y our love
The rooms were mustly
And the pipes were old
All that winter we shared a cold
Drank all the orange juice
That we could hold
I do it for y our love
Found a rug
In an old junk shop
And I brought it home to y ou
Along the way the colors ran
The orange bled the blue
The sting of reason
The splash of tears
The northern and the southern
Hemispheres
Love emerges
And it disappears
I do it for y our love
I do it for y our love
A Teresa colocou na cabeça de cada uma delas um barrete vermelho e branco,
e o psiquiatra notou que a mais nova transportava a boneca favorita, criatura de
pano de olhos desenhados ao acaso na esfera calva da cara, e cuja boca se
descerrava num esgar patético de rã: dormiam juntas na cama e mantinham
relações de parentesco complexas que deviam evoluir segundo o humor da
garota e das quais me apercebia confusamente por misteriosas frases ocasionais
que me compeliam a perpétuos exercícios de imaginação. A mais velha, que se
caracterizava por uma visão angustiada da existência, sustentava com as coisas
inanimadas o combate de Charlot contra as rodas dentadas da vida,
precocemente prometida a uma vitoriosa derrota. Torcido de cólicas de amor o
médico tinha a impressão de haver feito a favor delas um seguro de sonho, de
que pagava os juros sob a forma dos gases da sua colite e dos projectos
paralisados em que enlanguescia: a esperança de que chegassem mais à frente
do que ele animava-o do júbilo dos pioneiros, crente de que as filhas
aperfeiçoariam a pobre marmita de Papin dos seus desejos, espirrando pelas
frinchas artesanais desilusões de fumo. A Teresa despediu-se de uma camarada
de armas que aguentava nas canelas a agressão classista de um miúdo em que se
esboçava um gestor, e veio vindo com as meninas na direcção da avenida,
aquário de prédios trémulos da sombra luminosa das árvores.
The sting of reason
The splash of tears
The northern and the southern
Hemispheres
Love emerges
And it disappears
I do it for y our love
I do it for y our love
Curvado como o poeta Chiado no seu banco de bronze o médico poderia terlhes
tocado quando quase roçaram por ele a caminho de casa, de olhos postos
num pato de ferro à entrada de uma tabacaria, que por vinte e cinco tostões
oscilava e abanava num galope epiléptico. Tossiu de emoção e o mendigo,
sarcástico, voltou para ele o crânio hirsuto banhado num riso feroz:
Dão-te tesão, ó malacueco?
E pela segunda vez nesse dia o psiquiatra teve vontade de se vomitar a si
próprio, longamente, até ficar vazio de todo o lastro de merda que tinha.
O médico arrumou o carro numa das ruazitas que saem do Jardim das
Amoreiras à laia de patas de um insecto cuja carapaça fosse de relva e árvores,
e encaminhou-se para o bar: tinha duas horas desocupadas antes da sessão de
análise e pensara que talvez se distraísse de si próprio observando os outros,
sobretudo a espécie de outros que se olham ao espelho dentro de copos de uísque,
peixes das seis da tarde no seu aquário de álcool, cujo oxigénio é o anidrido
carbónico das bolhinhas da água do Castelo. O que é que as pessoas que
frequentam os bares, pensava ele, fazem de manhã? E achou que com o
aproximar do fim da noite os bebedores se deviam evaporar na atmosfera
rarefeita de fumo como o génio da lâmpada de Aladino, até que à chegada de
novo crepúsculo recuperavam carne, sorriso e gestos vagarosos de anémona, os
tentáculos dos braços estendiam-se para o primeiro copo, a música reprincipiava
a tocar, o mundo ingressava nos carris do costume, e grandes pássaros de faiança
levantavam voo do céu de fórmica da tristeza.
Os arcos de pedra por cima do jardim possuíam a curva exacta de
sobrancelhas espantadas de se acharem ali, junto à confusão de formigueiro
anárquico do Rato, e o psiquiatra teve a sensação de que era como se um rosto de
muitos séculos estivesse examinando, surpreso e grave, os baloiços e o escorrega
que havia entre as árvores e de que nunca vira nenhuma criança utilizar-se,
abandonados como os carrosséis de uma feira defunta: não sabia explicar a razão
mas o Jardim das Amoreiras afigurava-se-lhe sempre qualquer coisa de só e de
extremamente melancólico, mesmo no verão, e isto desde os anos remotos em
que ali ia uma hora por semana receber lições de desenho de um sujeito gordo
que morava num segundo andar repleto de miniaturas de plástico de aviões: as
inquietações de minha mãe, reflectiu o médico, as eternas inquietações da minha
mãe a meu respeito, o seu permanente receio de me ver um dia a recolher
trapos e garrafas nos caixotes do lixo, de saco às costas, transformado em
industrial da miséria. A mãe acreditava pouco nele como indivíduo crescido e
responsável: tomava tudo o que ele fazia como uma espécie de jogo, e mesmo
na relativa estabilidade profissional do filho suspeitava a enganadora
tranquilidade que antecede os cataclismos. Costumava contar que acompanhara
o médico no acto do exame de admissão ao liceu de Camões, e que, ao espreitar
pela janela da sala, vira todos os miúdos inclinados para o ponto, compenetrados
e atentos, à excepção do psiquiatra, que de queixo no ar, inteiramente alheio,
estudava distraído a lâmpada do tecto.
E por essa amostra percebi logo o que ia ser a vida dele, concluía a mãe com
o sorriso triunfalmente modesto dos Bandarras com pontaria.
Para ficar de paz com a sua consciência, no entanto, procurava combater o
inelutável solicitando todos os anos ao director do ciclo que colocasse o filho
numa carteira da frente, « mesmo diante do professor» , a fim de que o médico
bebesse à força os eflúvios da decomposição dos polinómios, a classificação dos
insectos e outras noções de utilidade indiscutível, em lugar dos versos que
escrevia às escondidas nos cadernos dos sumários. O curso do psiquiatra,
recheado de peripécias, assumira para ela as proporções de uma guerra
tormentosa, em que as promessas a Nossa Senhora de Fátima alternavam com os
castigos, os suspiros de dor, as profecias trágicas e as queixas às tias, testemunhas
desoladas de tanta infelicidade, que se julgavam sempre pessoalmente atingidas
pelo mais insignificante sismo familiar. Agora, olhando a janela do segundo
andar do professor de desenho, o médico recordava-se da sua espectacular
reprovação na prova prática de anatomia, em que lhe haviam passado para as
mãos um frasco limoso com a artéria subclávia dentro, pintada a vermelho por
entre um emaranhado de tendões apodrecidos, em como o formol dos cadáveres
lhe irritava as pálpebras e como, depois de pesar na balança da cozinha os quatro
tomos do Tratado sobre ossos e músculos e articulações e nervos e vasos e
órgãos, declarara para si próprio diante daqueles seis quilos e oitocentos de
ciência compacta:
Caralhos me fodam se vou estudar esta merda.
Por essa época penava na composição de um longo poema péssimo inspirado
no Pale Fire de Nabokov, e acreditava existir em si a ampla força do Claudel das
Grandes Odes temperada pela contenção de T. S. Eliot: a ausência de talento é
uma bênção, verificou ele; só que custa a gente habituar-se a isso. E assumida a
sua condição de homem comum reduzido aos raros voos de perdiz de uma poesia
ocasional, sem a corcunda da imortalidade agarrada às costas, sentia-se livre
para sofrer sem originalidade e dispensado de rodear os seus silêncios da
muralha da taciturna inteligência que associava ao génio.
O psiquiatra rodeou o Jardim das Amoreiras rente às casas para cheirar o odor
do sol nas fachadas, a claridade que a cal bebia como os frutos a luz. Numa
parede a que aderiam restos de cartazes como farripas a uma nuca calva, leu
escrito a carvão:
O
POVO
LIBERTOU
O
CAMARADA
HENRIQUE
TENREIRO
E a sigla dos anarquistas por baixo, A irónico inserido num círculo. Um cego
que se deslocava adiante de si batia com a bengala no passeio num ruído de
castanholas indecisas: cidade morta, pensou o médico, cidade morta em urna de
azulejos a esperar sem esperança quem não virá mais: cegos, reformados e
viúvas, e o Salazar que se Deus quiser não expirou. Havia um doente no hospital
dele, alentejano muito sério e muito comedido, o senhor Joaquim, sempre de
chapéu mole na cabeça e fato-macaco impecável, que estava em comunicação
permanente e directa com o antigo presidente do conselho a quem chamava
respeitosamente « o nosso professor» e de quem recebia ordens secretas para a
condução dos negócios públicos. Guarda-republicano numa vila perdida da
planície agarrou um dia na caçadeira contra os conterrâneos, pretendendo
obrigá-los a construir uma prisão de Caxias de acordo com as instruções que o
nosso professor lhe segredava ao ouvido. De tempos a tempos o psiquiatra
recebia cartas do povoado do senhor Joaquim, assinadas pelo prior ou pelo chefe
dos bombeiros, pedindo para não libertarem aquele apavorante emissário de um
fantasma. Uma manhã o médico chamou o senhor Joaquim ao gabinete e disselhe
o que os enfermeiros não tinham coragem de dizer:
Senhor Joaquim o nosso professor faleceu há mais de três quinze dias. Até
deu a fotografia no jornal.
O senhor Joaquim foi à porta assegurar-se de que ninguém os escutava, voltou
para dentro, inclinou-se para o psiquiatra e informou-o num sussurro:
Foi tudo a fingir, senhor doutor. Pôs lá um parecido com ele e a Oposição
engoliu o isco: ainda há coisa de um quarto de hora me nomeou ministro das
Finanças, já vê. O nosso professor come-lhes as papas na cabeça a todos.
Salazar de um cabrão que nunca mais acabas de morrer, pensou ele na altura,
sentado à secretária, defrontando-se com a obstinação do senhor Joaquim:
quantos senhores Joaquins dispostos a seguirem de olhos vendados um antigo
seminarista trôpego com alma de governanta de abade contando tostões na
despensa? No fundo, meditava o médico contornando o Jardim das Amoreiras, o
Salazar estoirou mas da barriga dele surgiram centenas de Salazarzinhos dispostos
a prolongarem-lhe a obra com o zelo sem imaginação dos discípulos estúpidos,
centenas de Salazarzinhos igualmente castrados e perversos, dirigindo jornais,
organizando comícios, conspirando nos entrefolhos das Donas Marias deles,
berrando no Brasil o elogio do corporativismo. E isto num país onde há tardes
assim, perfeitas de cor e luz como um quadro de Matisse, belas da rigorosa
beleza do Mosteiro de Alcobaça, num país de tomates pretos que o Estado Novo
quis esconder debaixo de saias de batina, ó Mendes Pinto: e com muita Ave
Maria e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de um Credo os matámos a
todos. Entrou no bar com o espírito de quem penetra em sombra húmida de
latada à hora do calor, e antes que as pupilas se habituassem ao semi-escuro do
estabelecimento distinguiu apenas, numa bruma de trevas, brilhos vagos de
candeeiros e reflexos de garrafas ou de metais, como luzes esparsas de Lisboa
vista do mar em noites de nevoeiro. Tropeçou no sentido do balcão por puro
instinto, cão míope a caminho do osso que supõe, enquanto a pouco e pouco
vultos se formavam, os dentes de um sorriso flutuaram perto, um braço
empunhando copo ondulou à sua esquerda, e um mundo de mesas e cadeiras e
alguma gente surgiu do nada, ganhou volume e consistência, cercou-o, e era
como se o sol lá fora e as árvores e os arcos de pedra do Jardim das Amoreiras
estivessem de repente muito longe, perdidos na dimensão irreal do passado.
Uma cerveja, solicitou o médico olhando em torno: sabia que a mulher
costumava frequentar aquele bar e procurava qualquer coisa que a prolongasse
nos bancos vazios do mesmo modo que cova de colchão anuncia ausência de
corpo, um indício da sua passagem, algo que lhe permitisse reconstruí-la a seu
lado em carne viva e sorridente, morna, cúmplice. Um casal de cabeças juntas
cochichava-se num canto, um homem gigantesco batia palmadas vigorosas no
ombro conformado de um amigo, transformando-lhe as articulações numa papa
fraternal.
Com quem virás aqui, perguntou-se o ciúme aceso do psiquiatra, de que
conversarás, com quem te deitarás em camas que desconheço, quem te aperta
nas mãos o enxuto das ancas? Quem ocupa o lugar que foi o meu, que é ainda o
meu em mim, espaço de ternura dos meus beijos, liso convés para o mastro do
meu pénis? Quem navega à bolina no teu ventre? O sabor da cerveja recordoulhe
Portimão, o odor de hálito de diabético do mar da Praia da Rocha arrepiado
pelo sopro feminino do levante, a primeira vez que fizeram amor, num hotel do
Algarve, casados de véspera, trémulos de aflição e de desejo. Eram então muito
novos e aprendiam-se mutuamente as veredas do prazer, a tactear, potros
recém-nascidos cabeceando sôfregos o bico de uma mama, colados um ao outro
no espanto enorme de descobrirem a cor verdadeira da alegria. Quando
namorávamos em casa dos teus pais, disse-se o médico, diante das carantonhas
feias das máscaras chinesas, eu esperava ouvir os teus passos na escada, o som
dos saltos altos nos degraus, e crescia em mim um ímpeto de vento, uma raiva,
uma ânsia de vómito ao avesso, a fome de ti que sempre me habitou e me fazia
voltar mais cedo do Montijo para nos deitarmos sobre a colcha na pressa de
quem pode morrer daqui a nada, me fazia erguer-me em súbitas erecções só de
pensar na tua boca, no teu voluptuoso modo de te dares, na curva dos teus ombros
em concha, nos teus seios grandes, tenros e suaves, me fazia mastigar e mastigar
a tua língua, passear no teu pescoço, entrar em ti num movimento único de
espada na bainha, deslumbrado. Nunca topei corpo para mim como o teu, dissese
o médico vertendo a cerveja na caneca, tão à medida das minhas humanas e
desumanas medidas, as autênticas e as inventadas que nem por o serem o são
menos, nunca topei uma tão grande e boa capacidade de encontro com outra
pessoa, de absoluta coincidência, de se ser entendido sem falar e de entender o
silêncio e as emoções e os pensamentos alheios, que me foi sempre milagre o
termo-nos conhecido na praia onde te conheci, magra, morena, frágil, o teu
antiquíssimo perfil sério pousado nos joelhos dobrados, o cigarro que fumavas, a
cerveja (igual a esta) no banco à tua ilharga, a tua perpétua atenção de bicho, os
muitos anéis de prata dos teus dedos, minha mulher desde sempre e minha única
mulher, minha lâmpada para o escuro, retrato dos meus olhos, mar de setembro,
meu amor.
E porque é que só sei gostar, perguntou-se examinando as bolhas de gás
pegadas à parede do vidro, porque é que só sei dizer que gosto através dos
rodriguinhos de perífrases e metáforas e imagens, da preocupação de alindar, de
pôr franjas de crochet nos sentimentos, de verter a exaltação e a angústia na
cadência pindérica do fado menor, alma a gingar, piegas, à Correia de Oliveira
de samarra, se tudo isto é limpo, claro, directo, sem precisão de bonitezas, enxuto
como um Giacometti numa sala vazia e tão simplesmente eloquente como ele:
depor palavras aos pés de uma escultura equivale às flores inúteis que se
entregam aos mortos ou à dança da chuva em torno de um poço cheio: chiça
para mim e para o romantismo meloso que me corre nas veias, minha eterna
dificuldade em proferir palavras secas e exactas como pedras. Ergueu o queixo,
bebeu um gole e deixou o líquido escorrer por ele num vagar de estearina
sulfúrica a sacudir-lhe a lassidão dos nervos, zangado consigo mesmo e com os
torcidos de Crónica Feminina que se autogravara nos miolos, arquitecto da
própria piroseira mau grado o aviso piloto de Van Gogh: tentei exprimir com o
vermelho e o verde as terríveis paixões humanas. A brutal singeleza da frase do
pintor arrepiou-lhe fisicamente as costelas como lhe acontecia, por exemplo, ao
escutar o Requiem de Mozart ou o saxofone de Lester Young em These Foolish
Things, correndo ao longo da música à maneira de dedos sábios por nádega
adormecida.
Pediu outra cerveja e o telefone ao empregado que explicava ao amigo do
sujeito muito grande as razões de queixa que tinha contra a professora de francês
do filho, e marcou o número que a rapariga ruiva lhe dera e de que tomara
apontamento no pedaço de página rasgado do jornal das missões: a campainha
tocou nove ou dez vezes em vão. Desligou e voltou a discar, na hipótese de que
tivesse havido erro de agulhas nos cabos da companhia e de que a voz de
Marlene Dietrich lhe respondesse agora através dos buraquinhos de baquelite
preta, minúscula e nítida como o grilo do Pinóquio. Acabou por estender de volta
o telefone ao empregado.
A tiazinha não está?, perguntou este com o afecto irónico dos capitães dos
navios de álcool aparelhando para a longa travessia da noite.
Pode ser que o congresso das Filhas de Maria se prolongasse, sugeriu o
calmeirão que subia a bordo do quarto gin e começara a achar os soalhos
inclinados.
Ou esteja a explicar a circuncisão na aula de catequese, acrescentou o amigo
que pertencia à classe dos que não gostam de ficar para trás e tentam
aflitivamente acertar o passo pelos restantes.
Ou se cague em mim, opinou o médico para a garrafa de cerveja por estrear.
Uma das vantagens dos bares, pensou, é poder-se conversar com os gargalos
sem risco de bronca nem de estrilho: e de repente, no espaço de um segundo,
entendeu os bêbedos, não tecnicamente, à custa das explicações de fora para
dentro da Psiquiatria, exageradamente certas e por conseguinte erradas, mas
uma compreensão de tripas, feita da gana de fugir que em tantas ocasiões era a
sua. O indicador do calmeirão tocou-lhe com inesperada delicadeza no ombro:
Irmãozinho estamos sós no convés.
Mas há miúdas do escafandro à espera em Singapura, juntou o amigo para
que o pelotão lhe não escapasse.
O calmeirão fitou-o com o desprezo majestático do gin:
Você charape que a conversa é de homens.
E para o médico, confidencial e fraterno:
Em a gente saindo daqui vamos à Cova da Onça afogar as misérias no
mamalhal.
Putas, resmungou o amigo, amuado.
A tenaz do matulão apertou-lhe o cotovelo até estalar:
Menos que a tua mãe meu bardamerdas.
Dirigindo-se às mesas vazias, autoritário:
Quem falar mal de mulheres à minha frente fode-se.
A cara torcia-se-lhe de fúria ameaçadora procurando alvo a que apontar, mas
tirando o casal absorvido no seu canto, num complicado jogo de marradas e
apalpões, e os candeeiros palidamente acesos, achávamo-nos sem passageiros na
jangada, condenados à companhia uns dos outros como, pensou o psiquiatra, no
arame farpado em África: para o fim da comissão já se jogava king com
entoações de ódio na garganta, formigueiros de bofetadas nos dedos, a ira pronta
a disparar da boca desengatilhada. Porque será que continuamente me recordo
do inferno, interrogou-se ele: por de lá não ter escapado ainda ou por o haver
substituído por outra qualidade de tortura? Bebeu metade da cerveja como quem
toma um remédio desagradável e rasgou em pedacinhos tão pequenos quanto
pôde o número de telefone da rapariga ruiva, que a essa hora devia estar a contar
ao namorado o que se divertira à custa de um idiota qualquer na sala de espera
do dentista: imaginou o riso de ambos e com ele nos ouvidos liquidou o que
restava da cerveja até sobrar no copo uma baba de espuma: caracol de centeio
fermentado põe os pauzinhos da borracheira ao sol e ajuda-me a boiar porque
nadar não sei. E recordou-se de uma história que fazia parte do património
familiar, a de um casal amigo da avó, os Fonsecas, em que a mulher robusta
tiranizava o marido baixinho: o senhor Fonseca, por exemplo, emitia um som
tímido e ela gritava logo O Fonseca não fala porque o Fonseca é estúpido, o
senhor Fonseca ia acender um cigarro e ela grasnava O Fonseca não fuma, e
assim por diante. Uma tarde a avó servia o chá a um círculo de visitas e ao
chegar ao senhor Fonseca perguntou Senhor Fonseca, verde ou preto? A mulher
do senhor Fonseca, atenta como cão de guarda doente da vesícula, regougou O
Fonseca não bebe chá; e no silêncio que se seguiu ocorreu um fenómeno
espantoso: o senhor Fonseca, até então e durante quarenta anos de ditadura
conjugal, manso, obediente e resignado, assentou um murro no braço da cadeira
e informou com voz sumida dos testículos desibernados:
Quero verde, e quero preto.
É o momento, disse-se o médico pagando as garrafas e soltando-se do abraço
do calmeirão que atingira entretanto a fase dos amplexos, é o momento de fazer
sair dos tomates a porra de um jacto que se veja. Cá fora escurecia: talvez que
nessa noite a mulher viesse àquele bar e nem reparasse nos arcos de pedra do
jardim.
Como de costume vou chegar atrasado à sessão de análise, pensou o psiquiatra
parado num sinal vermelho a quem atribuía de momento inteira responsabilidade
por todos os infortúnios do mundo, os seus à cabeça da lista bem entendido.
Estava na faixa lateral da avenida da República, atrás de uma camioneta de
carga, e trepidava de impaciência olhando o trânsito que corria
perpendicularmente a si, vindo do Campo Pequeno, desconforme mesquita de
tijolos, catedral dos cornos. Duas raparigas muito bonitas passaram junto ao
carro de conversa uma com a outra, e o médico seguiu-lhes o movimento das
omoplatas e das coxas à medida que andavam, a harmonia perfeita, de pássaro
em voo, dos gestos, a forma como uma delas afastava o cabelo com a mão:
quando eu era mais novo, lembrou-se, tinha a certeza de que nunca nenhuma
mulher se interessaria por mim, pelo meu queixo largo, pela minha magreza;
encalhava sempre de timidez gaga se me fitavam, a sentir-me corar, lutando
contra o desejo violento de desaparecer a galope: aos catorze-quinze anos
levaram-me pela primeira vez ao cem da Rua do Mundo, eu nunca tinha estado
no Bairro Alto à noite, naquela acumulação de sombras estreitas e de vultos
imóveis, e entrei na casa de passe ao mesmo tempo curioso e aterrado, com a
vontade de fazer chichi dos exames a embaraçar-me a marcha. Sentei-me numa
sala de espelhos e de cadeiras ao lado de uma mulher em combinação que fazia
crochet e nem sequer levantou o queixo das agulhas e em frente de um sujeito
idoso que aguardava vez de pasta nos joelhos (e distinguia-se na pasta o relevo
dos termos de café com leite do almoço) e de repente vi-me multiplicado até à
náusea nos espelhos biselados, dezenas de eus aflitos mirando-se uns aos outros
em pasmo de pavor: claro que a pila se me reduziu nas cuecas ao tamanho que
ficava ao sair do banho de água fria, harmónio de pele engelhada capaz quando
muito de mijadela oblíquia, e desapareci corredor fora em trote humilde de cão
expulso na direcção da porta onde a patroa, de varizes a sobrarem dos chinelos,
discutia com um soldado bêbado que atravessara no umbral a bota coberta de
uma geleia de vomitado.
O sinal passou a verde e imediatamente o táxi por trás dele buzinou, imperioso:
porque raio é que os choferes de táxi, perguntou-se, são as criaturas mais azedas
do mundo? E também homens sem rosto, reduzidos a nuca e ombros plantados
como pregos no banco da frente, e ocasionalmente a um par de olhos vazios no
quadradinho do retrovisor, órbitas de vidro inexpressivo como os dos bichos das
noras. Talvez que circular por Lisboa o dia inteiro atire as pessoas para uma
espécie de epilepsia explosiva, talvez que esta cidade dê raiva e nojo a quem por
obrigação a percorre em todos os sentidos, talvez que o próprio do indivíduo seja
a exaltação assassina em franjas e andemos por aqui, nós os comedidos, a fingir
amabilidade que não temos. Mandou caralhadas para o chofer que lhe respondeu
com gigantesco manguito como dois escuteiros a fazerem-se sinais de bandeiras,
e virou à direita para a João XXI, em cujo início, do lado esquerdo, havia
traseiras de prédios fuliginosos de que ele gostava, com as marquises salientes
como verrugas de ninhos precários em que se adivinhavam tábuas de passar a
ferro e melancolias domésticas. Amigo Cesário, disse o psiquiatra com ternura,
vi a semana passada qualquer coisa que te traria à boca alexandrinos de alegria:
procurava eu sítio onde jantar e passando rente ao teu busto iluminado na berma
de relva estefânica em que o puseram, dei com uma velha de preto sentada no
degrau da estátua com uma alcofa aos pés, e compreendi então a diferença que
vai de ti ao Eça e que é a mesma que separa o abraço a uma virgem de pedra da
vizinhança de uma criatura viva, arrancada à solidez de carne dos teus versos.
Atravessou uma rua de garagens e oficinas imersas na escuridão do trabalho
acabado, com o toldo amarelo de um bar de brasileiros na ponta (Os portugueses
são estúpidos, informava o aguadeiro galego da história da mãe, vimos para aqui
vender-lhes a água deles) e estacionou junto a uma loja de móveis que fazia
esquina entre a avenida Óscar Monteiro Torres e a rua Augusto Gil, exibindo
cómodas detestáveis e óleos ovais de flores em molduras de talha. Um pastel
representando um galgo num fundo de infanta de Velázquez figurava na montra,
e o cão parecia sorrir o sorriso sabido que escapa às vezes a um pintor aselha e
através do qual a falta de talento troça, sem se dar conta, de si própria. Durante
algum tempo examinou estarrecido um lustre fenomenal de alumínio, pensando
em como o mau gosto exigia, à sua maneira, considerável dose de imaginação, e
desejou experimentar deitar-se numa cama extraída dos pesadelos do Dr.
Mabuse em noite de paragem digestiva, a ver que metamorfoses delirantes
sofreria o seu corpo, no espanto imenso da criada recém-chegada da província e
que seu pai levara a visitar o Jardim Zoológico. Este é o elefante, explicava o pai,
e a criada pasmava a olhar o bicho, a estudar-lhe as patas, a cabeça, a tromba;
aqui é o rinoceronte, dizia o pai, aqui o hipopótamo, aqui o gorila, aqui o avestruz,
e a criada ia de estupefacção em estupefacção, órbitas redondas, boca aberta,
mãos postas, até que chegaram ao recinto da girafa: aí a surpresa da rapariga
atingiu o clímax. Durante minutos deslumbrada, contemplou o longo pescoço
picado de manchas e a cabeça lá em cima, até que se aproximou do pai do
médico e perguntou num sussurro:
Senhor doutor como se chama este?
É a girafa, anunciaram-lhe.
A criada mastigou longamente a palavra, observando sempre o animal e
murmurou em suspiro de êxtase:
Girafa
Que nome tão bem posto.
Anoitecera por completo e no escuro de uma porta o psiquiatra distinguiu um
grupo de cabo-verdianos de óculos defumados discutindo com ardor, movendo
em acenos vastos as mangas claras das camisas. Um deles transportava sob um
braço um rádio de pilhas que esguichou de supetão um jorro de música altíssima
à maneira de um autoclismo despejando um vómito de fusas em desordem.
Havia uma taberna um pouco adiante, com um aparelho de televisão numa
prateleira junto ao tecto, e os frequentadores da tasca, de copo em punho,
torciam as cabeças em uníssono na direcção do écran que dimanava sobre eles
uma luz azulada fluorescente de radioscopia, revelando-lhes o esqueleto dos
sorrisos: pelo entusiasmo dialéctico dos cabo-verdianos o médico calculou que
teriam robustecido os seus humores vociferantes com o tónico do tinto, cuja
presença se pressentia em cada exclamação ou gargalhada. Do rés-do-chão
vizinho uma senhora gorda acompanhava a cena, interessadíssima, derramando
os seios no peitoril: deve usar o retrato em esmalte do Padre Cruz ao pescoço,
apostou o psiquiatra a subir as escadas a caminho da análise, ter um cão roliço
chamado Benfica, um filho bancário e uma neta Sónia Marisa com pala de
plástico na lente esquerda dos óculos por entortar a vista. Talvez, completou ele
tocando a campainha, que seja madrinha de casamento da empregada do
dentista e conversem de renda aos domingos à tarde enquanto os cônjuges
ouvem o relato de aposta do totobola nos joelhos.
Inventa inventa que o tipo já te casca, advertiu-se a caminho da sala de grupo
depois de a porta se abrir num estalo de tampa, seco, do fecho: nos últimos
tempos, a seu ver, andava a comer porrada a mais do analista como quando em
pequeno o castigavam por faltas que na sua opinião não lhe pertenciam, e crescia
nele um grande ressentimento contra o outro que parecia comprazer-se em
destruir-lhe uma a uma as balofas (mas necessárias?) arquitecturas das suas
quimeras: um gajo anda aqui como boi manso no matadouro, reflectiu o médico,
a levar alfinetadas nos guizos de magarefes sádicos, e se aguenta é na única
esperança de que depois a carne se lhe torne mais tenra; um gajo anda aqui a
aprender a viver ou a ser domesticado, capado, desmiolado, transformado em
Sãozinha laica por dois contos e tal ao mês. Que porra de lavagem à cornadura é
esta que saio daqui torcido como um velho com reumático, lumbago, ciática,
bicos de papagaio e dor de dentes, alma de rafeiro a ganir a caminho de casa, e
no entanto volto, volto pontualmente dia sim dia não para receber mais trolha ou
uma indiferença total e nenhuma resposta às minhas angústias concretas,
nenhuma ideia acerca de como sair deste poço ou pelo menos visionar um nada
de ar livre lá em cima, nenhum gesto que me mostre a direcção de uma certa
tranquilidade, de uma certa paz, de uma certa harmonia comigo: Freud da puta
judia que te pariu vai levar no cu do teu Édipo. Abriu a porta do grupo e em vez
de declarar Merda para todos disse Boa tarde e foi sentar-se, disciplinadamente,
na única cadeira livre da sala.
O grupo estava completo: cinco mulheres, três homens (com ele) e o
grupanalista amesendado no lugar habitual, de olhos fechados, a brincar com o
relógio de pulso pousado no braço da poltrona: meu cabrão, pensou o psiquiatra,
meu cabrão do caralho uma sessão destas prego-te um pontapé nas partes para
verificar se estás vivo e, como se o tivesse entendido, o psicanalista levantou para
ele a pálpebra sonâmbula e neutra que se desviou de imediato para um quadro na
parede da sala que representava aproximadamente uma paisagem de vila:
telhados de várias cores, torre de igreja, céu revolto: pela janela aberta chegava,
atenuada, a discussão dos cabo-verdianos na rua e a música do rádio que atingira
agora a intensidade de cruzeiro; através das cortinas percebiam-se os contornos
dos prédios vizinhos, sinal que a vida prosseguia fora daquele compartimento
aparentemente estanque, repositório de aflições concentradas.
Uma das mulheres falava do pai e da sua dificuldade em se aproximar dele, e
o médico, que já escutara a descrição dezenas de vezes e a achava
especialmente chata e monocórdica, foi-se entretendo a observar as paredes a
necessitarem de camada nova de pintura, os cadeirões pretos e brancos
semelhantes a pinguins obesos, uma mesa ao canto coberta por toalha vermelha
de má qualidade, com um telefone e duas listas esbeiçadas em cima: era aí que o
terapeuta colocava os envelopes dos honorários que continham dentro números
de 1 a 31 e círculos a esferográfica representando as datas das sessões. Um dos
homens, que ele estimava bastante, dormitava de queixo na mão: isto hoje
parece o parlamento, pensou o psiquiatra que se sentia por seu turno também
invadido por uma espécie muito leve de sono, película de indiferença lassa que
lhe perturbava a atenção. A mulher que falava do pai calou-se de repente e uma
outra iniciou o longo relato da suspeita de meningite do filho, que afinal não se
confirmara após demorada via sacra por Bancos hospitalares e doutores de
diagnósticos contraditórios, preocupadíssimos em desmentirem com desdém a
opinião do colega anterior: o homem que dormitava acordou, espreguiçando-se e
pediu-lhe um cigarro. À sua direita uma rapariga de aspecto órfão chupava
pastilhas para as amígdalas dando de quando em quando um pequeno estalo com
a língua: possuía os cantos da boca descaídos e amargos como as sobrancelhas
das pessoas muito tristes.
Venho aqui há não sei quantos anos, reflectiu o médico observando os
companheiros de viagem, a maior parte dos quais haviam começado a navegar
em águas de análise antes dele, e ainda não vos conheço bem nem aprendi a
conhecer-vos, a entender o que quereis da vida, o que esperais dela. Há alturas
em que estou fora daqui e penso em vocês e sinto a vossa falta, e depois
pergunto-me o que representam para mim e não sei a resposta porque continuo
sem saber a maior parte das respostas e tropeço de pergunta em pergunta como
o Galileu antes de descobrir que a Terra se mexia e encontrar nessa explicação a
chave das suas interrogativas. E acrescentou: que explicação acharei eu um dia,
que Santo Ofício virá a condená-la, e quem me obrigará a largar mão das
minhas pequenas conquistas individuais, penosas vitórias de merda sobre a merda
de que sou feito? Tirou um cinzeiro rachado da mesa central e acendeu um
cigarro para si: o fumo entrou-lhe nos pulmões com a avidez do ar por um balão
vazio e inundou-lhe o corpo de uma espécie de entusiasmo calmo: o psiquiatra
visionou o primeiro tabaco clandestino, furtado à mãe, chupado aos onze anos
pela janela da casa de banho numa volúpia de grande aventura. Chesterfield: a
mãe acendia-os no fim do almoço, junto ao tabuleiro da máquina de café,
cercada de filhos e marido, e o médico ficava olhando o fumo que se acumulava
em torno do candeeiro de ferro do tecto, formando e desfazendo nuvens estiradas
azuis, transparentes e vagarosas como os cirros do verão. O pai batia o cachimbo
no cinzeiro de prata com a inscrição O Fumo Voa A Amizade Fica ao centro,
uma grande serenidade espalhava-se na sala de jantar, e o psiquiatra tinha a
certeza reconfortante de que ninguém entre os que ali se encontravam morreria
nunca: dezasseis pares de olhos claros à volta da floreira de prata, unidos pela
semelhança das feições e por um breve-longo passado comum.
Alguns membros do grupo perguntaram à rapariga pormenores da doença do
filho, e o médico reparou que o analista, na aparência cataléptico, limpava com a
unha uma mancha na gravata vermelha e preta, de ramagens: este caralho,
pensou ele, além de ser feio veste-se cada vez pior: nem meias de estrelinhas lhe
faltam, ei-lo uniformizado a rigor para copo-de-água em pastelaria da avenida
Paris, acompanhado pela senhora de gorduras apertadas em cetins ameixa e
raposa de coelho com psoríase ao pescoço: no íntimo desejaria que o analista se
vestisse segundo os seus próprios padrões de elegância, aliás discutíveis e vagos
no que a si se referia: um dos irmãos costumava dizer-lhe que ele, psiquiatra, se
assemelhava à fotografia à la minuta de um noivo de província, espantado em
jaquetão de riscas mal feitas. Enfarpelo-me como o Coelho Branco da Alice e
exijo que aqueles que aprecio ingressem no uniforme do Chapeleiro Louco:
talvez que assim possamos todos jogar croquet com a Rainha de Copas, cortar de
um só golpe o pescoço ao quotidiano do Quotidiano e saltar a pés juntos para o
outro lado do espelho. E logo se advertiu a si próprio: Vossa Majestade não deve
rugir tão alto mas, de qualquer modo, como é a luz de uma vela quando está
apagada?
O terceiro homem do grupo, que usava óculos e se parecia com o Emílio e os
Detectives, explicou que lhe agradaria que a filha morresse para receber mais
atenção da mulher, o que provocou murmúrios de indignação diversa na
assistência.
Foda-se foda-se, disse o que dormitava, agitando-se na cadeira.
A sério, insistia o primeiro. Há instantes em que me dá ganas de me chegar
ao berço e despejar lá para dentro uma cafeteira a ferver.
Credo, disse a da meningite que procurava o lenço na carteira.
Seguiu-se um silêncio que o psiquiatra aproveitou para acender outro cigarro, e
o parricida tirou os óculos e sugeriu baixinho:
Se calhar temos todos vontade de matar as pessoas de quem gostamos.
O grupanalista principiou a dar corda ao relógio e o médico sentiu-se como a
Alice na assembleia dos animais presidida pelo Dódó: que estranha mecânica
interna rege isto tudo, pensou ele, e que subterrâneo fio condutor une frases
desconexas e lhes confere um sentido e uma densidade que me escapam?
Estaremos no limiar do silêncio como em certos poemas de Benn, em que as
frases adquirem peso insuspeitado e a significação a um tempo misteriosa e
óbvia dos sonhos? Ou será que como Alberti sinto esta noite, feridas de morte, as
palavras, e me alimento do que nos interstícios delas cintila e pulsa? Quando a
carne se transforma em som aonde a carne e aonde o som? E aonde a chave que
possibilite descodificar este morse, torná-lo concreto e simples como a fome, ou
a vontade de urinar, ou a ânsia de um corpo?
Abriu a boca e disse:
Tenho saudades da minha mulher.
Uma das raparigas, que não falara ainda, sorriu-lhe com simpatia e isso
encorajou-o a continuar:
Tenho saudades da minha mulher e não sou capaz de o dizer a ela nem a mais
ninguém a não ser a você.
Porquê?, perguntou inesperadamente o grupanalista como se regressasse à
socapa de longa travessia pelos gelos de si próprio. A voz dele abria como que um
espaço agradável à sua frente, onde apeteceu ao psiquiatra deitar-se.
Não sei, respondeu rapidamente no medo de que a receptividade que
conseguira desaparecesse e se achasse defronte de oito rostos aborrecidos ou
hostis. Não sei ou sei, é conforme, acho que me apavora um bocado o amor que
os outros têm por mim e eu por eles e receio viver isso até ao fim, inteiramente,
entregar-me às coisas e lutar por elas enquanto tiver força, e quando a força se
acabar arranjar mais força para prosseguir o combate.
E falou do imenso amor que unira durante quase cinquenta anos o avô e a avó
paternos e no modo como os filhos e os netos mais velhos tinham de bater com os
pés no chão para avisarem da sua entrada em quarto em que eles estivessem
sozinhos. Reviu-os de mão dada à mesa da sala de jantar no decurso dos jantares
de família, e na forma como o avô afagava a mulher e lhe chamava minha
Velha, e punha nesse chamamento uma funda e quente e indestrutível ternura.
Falou da morte do avô e na coragem com que a avó aguentara doença, agonia e
morte, a pé firme e de olhos secos, e se percebia o grande sofrimento dela
debaixo da sua tranquilidade absoluta, sem pieguices nem lamentos de qualquer
espécie, e como seguira, direita e sacudida, a urna do seu homem para o jazigo,
recebera com sorriso urbano as condolências do oficial que comandava a escolta
do enterro militar do marido e, de regresso a casa, distribuíra pelos filhos os
objectos pessoais do pai e organizara imediatamente a vida de tal jeito que tudo
se mantivesse como ela e nós sabíamos que o avô quereria, e à hora da refeição
ocupou a cabeceira e aceitámos isso como um facto natural e assim ficou sendo
até que dezoito anos depois ela morreu por seu turno e quis levar a fotografia que
ele lhe dera pelas bodas de prata de casados no caixão. E falou do que o padre
disse na missa de corpo presente dela e que foi Perdemos todos uma mãe, e o
médico pensou muito nessa frase pronunciada a respeito da avó cuja falta de
ternura e cuja dureza o irritavam, e acabou por concordar que era verdade e que
em trinta anos da sua vida não soubera dar àquela mulher o valor que realmente
ela tinha, e que mais uma vez se enganara a medir as pessoas e agora era tarde,
como de costume, para emendar a mão.
Não se pode passar a limpo o passado mas pode-se viver melhor o presente e
o futuro e você tem cagaço disso que se pela, observou a rapariga do sorriso.
Pelo menos enquanto tiver necessidade de se continuar a punir, acrescentou o
analista que estudava intensamente a unha do polegar esquerdo, a que deviam
estar coladas, em microfilme, as obras completas de Melanie Klein.
O psiquiatra recostou-se para trás na cadeira e procurou no bolso o terceiro
cigarro dessa sessão: será que me castigo assim, meditou, e se o faço porque
diabo o faço? e em nome de que nebuloso e, para mim, inatingível pecado? Ou
simplesmente faço-o por de mais nada ser capaz e constituir esse o meu peculiar
modo de me sentir no mundo, como um alcoólico tem de beber para se certificar
que existe ou um marialva tem de fornicar para se assegurar que é homem? E
acabamos fatalmente por desembocar na pergunta essencial, que se encontra por
detrás de todas as outras quando todas as outras se afastam ou foram afastadas e
que é, se me permitem, Quem Sou Eu? Interrogo-me e a resposta consiste,
obcecantemente, invariavelmente, assim: Uma Merda.
Porque é que você se detesta, perguntou o parricida.
Talvez pela mesma razão que levava o tio José a entrar a cavalo pela cozinha
do meu avô, respondeu o médico.
E contou que o tio José, que ele não chegara a conhecer, passava meses em
completa imobilidade sentado a uma janela, sem falar com ninguém, até que de
repente se erguia, punha um cravo no fraque, montava a égua e iniciava um
período de actividade febril de negócios e cabarés, no intervalo dos quais entrava
a trote, quixotesco de decrépita alegria, nas copas de sobrinhos e amigos.
Nem o tio José sabia porque cavalgava entre tachos e gritos de cozinheiras
indignadas nem eu porque me não gramo, disse o psiquiatra.
E acrescentou baixinho, no tom de quem completa um qualquer percurso
interior:
O meu bisavô matou-se com duas pistolas ao descobrir que tinha um cancro.
Você não é o seu bisavô, explicou o analista coçando o cotovelo, e esse seu
Guermantes é apenas um Guermantes.
Vive no meio dos mortos para não viver no meio dos vivos, disse a rapariga
dos problemas com o pai. Parece uma voz off a falar de um álbum de retratos.
Porque não olha para nós que respiramos?, questionou o parricida.
E para si como um que respira, sugeriu a do sorriso. Você é como os miúdos
na cama, com medo do escuro, a puxarem os cobertores para cima da cabeça.
Que catrino leva estes caretas a caírem-me em cima à uma?, disse-se o
médico.
Os matulões a arriarem no ceguinho inválido, queixou-se ele com o sorriso
que pôde.
Antes que o ceguinho inválido, que não é ceguinho nem inválido, tente enrolar
os matulões e enrolar-se a si próprio para continuar a ter vantagem em ser
ceguinho e inválido, respondeu a melancólica das anginas, muito lesta. A gente
não embarca no canto de sereia da sua auto-piedade, e se você gosta de levar no
cu da alma é consigo mas não nos obrigue a assistir ao espectáculo.
Fez-se um silêncio grande preenchido pelo ruído abafado do trânsito lá em
baixo, trânsito nocturno, oblíquo deslizar de gato pela cidade iluminada: dentro de
minutos estarei sozinho no néon, pensou o psiquiatra, a puxar pela mona para
escolher restaurante onde jantar; e cada um destes sacanas tem alguém à espera:
esta última constatação fez subir dentro dele uma raiva enorme contra os outros,
que se defendiam melhor do polvo gelatinoso da depressão.
Cantar de galo de poleiro é fácil, berrou à roda acompanhando o grito de
obscenidades a duas mãos.
Um quer matar a filha, o outro manda-nos àquela parte, protestou a rir uma
das raparigas. Vocês são uns pontos do caneco a inventar angústias de papelão.
Bichanos de telhado que em vez de cio miam ameaços de tristeza,
aperfeiçoou a da meningite.
O analista assoou-se com estrépito e guardou o lenço em bola, sem o dobrar, no
bolso das calças: dir-se-ia assistir à conversa numa indiferença absoluta, entregue
à passividade de ruminações vegetais: o íntimo desse homem gordo, ainda novo,
constituía para o psiquiatra enigma completo, embora há anos se encontrassem
três vezes por semana naquela sala tão descuidada como o aspecto do dono, com
reposteiro de sacristia à entrada e tecto castanho de inumeráveis cigarros, onde
muito da sua vida se jogava. Disfarçadamente olhou o relógio do homem dos
sonos ao seu lado: mais uns minutos e o analista apoiaria os dedos nos braços da
cadeira e levantar-se-ia a dar por finda a sessão: descer as escadas, sair para a
rua, recomeçar: subir o poço a pulso até à paisagem de ervas de cá de fora,
torcer a roupa molhada, partir: como quando cheguei de África e não sabia o que
fazer, e me achava em corredor muito comprido e sem nenhuma porta, e tinha
uma filha e mulher grávida e um vasto cansaço nos ossos chocalhados por
demasias de picadas. Reviu mentalmente o túmulo do Zé do Telhado em Dala e a
casa com tecto de capim do senhor Gaspar no meio das árvores altas em que
pulava um enorme macaco domesticado, de focinho branco, preso por uma trela
a um poste de ferro, reviu a morte do cabo Pereira no incêndio do unimogue e o
fantástico das queimadas noite fora: desde que me levaram a Pádua a fazer a
primeira comunhão, pensou o médico, já andei um bom bocado.
Desculpe aquilo das angústias de papelão, disse a rapariga que momentos
antes se tinha rido dele. Eu sei que você anda à brocha.
O psiquiatra tocou de raspão no braço dela enquanto o grupanalista iniciava o
acto de se levantar, e lançou-lhe um soslaio de Calvário:
Minha filha, garantiu ele, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.
Sozinho na noite da rua Augusto Gil, sentado no carro de motor desligado e
luzes apagadas, o psiquiatra apoiou as mãos no volante e começou a chorar: fazia
os possíveis para não emitir nenhum som, de modo que os ombros se lhe
sacudiam como os das actrizes do cinema mudo, escondendo os caracóis e as
lágrimas no abraço de um avô de barbas: Porra porra porra porra porra, dizia ele
no interior de si mesmo, porque não achava dentro de mim outras palavras que
não fossem essas, espécie de débil protesto contra a tristeza cerrada que me
enchia. Sentia-me muito indefeso e muito só e sem vontade, agora, de chamar
por ninguém porque (sabia-o) há travessias que só se podem efectuar sozinho,
sem ajudas, ainda que correndo riscos de ir a pique numa dessas madrugadas de
insónia que nos tornam Pedro e Inês em cripta de Alcobaça, jacentes de pedra
até ao fim do mundo. E lembrei-me de uma pessoa me contar que em miúda a
mãe a levava a fazer visitas numa época em que as criaturas se relacionavam
umas com as outras em bicos de pés de delicadezas excessivas; e então ela
entrava em casas hirtas povoadas de grandes relógios e de pianos com castiçais
onde a música se inclina a tremer na direcção do vento, escutava os lamentos das
senhoras afogadas pelo damasco dos reposteiros e os suspiros dos mortos nos
retratos da parede, e pensava: Como esta casa deve ser triste às três horas da
tarde. De forma que anos e anos volvidos vertia álcool das farmácias nas jarras
das flores para o beber às ocultas e conseguir desse jeito um meio-dia perpétuo.
A noite das ruas e das praças, nessa sexta-feira, aparentava-se para o médico
às noites de infância quando, deitado, escutava, vindos do escritório, os tais duetos
de ópera que lhe chegavam à cama sob a forma de discussões apavorantes, o
pai-tenor e a mãe-soprano a insultarem-se aos gritos num fundo tétrico de
orquestra que o escuro ampliava até um deles enforcar o outro no nó corredio de
um dó sustenido, a que se seguia o terrível silêncio das tragédias consumadas:
alguém jazia na carpete numa poça de colcheias, assassinado a golpes de
bemóis, e maestros gatos-pingados, vestidos de preto, subiriam em breve a
escada carregando um caixão que se assemelhava a um estojo de contrabaixo,
com o crucifixo de duas batutas cruzadas no tampo. As criadas de crista e de
avental engomado entoavam o Coro dos Caçadores com sotaque da Beira, na
sala de jantar. O padre, vestido de D. José, surgia num remoinho espanhol de
Filhas de Maria. E o pastor-alemão da fábrica de curtumes lançava nas terras os
uivos do cão dos Baskerville revisto por Saint-Saëns.
Na noite de Lisboa tem-se a impressão de se morar num romance de Eugene
Süe com página para o Tejo, em que a rua Barão de Sabrosa é a fitinha
desbotada de marcar o lugar de leitura, apesar dos telhados onde florescem
plantações de antenas de televisão idênticas a arbustos de Miró. O psiquiatra, que
nunca usava lenço, limpou ranho e lágrimas com o pano verde com que
costumava apagar do vidro do carro o seu bafo morno de vaca de presépio,
acendeu as luzes (o mostrador iluminado afigurava-se-lhe sempre uma vila
alentejana em festa observada de longe) e ligou o motor do pequeno automóvel
cujo trabalhar se lhe transmitia ao corpo como se ele fosse também uma peça
daquela engrenagem macia que vibrava. Num vão de porta mesmo ao pé de si
uma rapariga nova beijava na boca um cavalheiro calvo: os rins dela possuíam a
harmonia sensual de certos desenhos rápidos de Stuart, e o médico invejou
intensamente o homenzinho feio que a afagava, rebolando olhos protuberantes de
goraz cozido: o carro americano amarelo de vidros verdes estacionado pertencialhe
sem dúvida: o esqueleto de plástico dependurado do espelho retrovisor
situava-se no mesmo comprimento de onda do anel que usava no dedo mínimo,
com uma libra em ouro segura por três dentinhos de prata. Se eu casasse com a
filha da minha lavadeira talvez fosse feliz, recitou o psiquiatra em voz alta,
olhando o sujeito que emitia pela boca aberta os ruídos de fervura com que as
pessoas de dentaduras postiças bebem o café demasiado quente: Quando eu tiver
a idade dele comerei beijos como quem come sopa, e palitarei as gengivas no
fim para extrair dos molares restos incómodos de ternura; e talvez uma rapariga
como esta se interesse pela minha graça de menir.
Oh darkness darkness darkness: noite informe aqui, escorrendo líquida das
casas, nascida ao rés-do-chão, do asfalto, dos lagos, dos buxos, do silêncio imóvel
do rio, das arcas e cómodas dos corredores das casas antigas, repletas da roupa
dos mortos: o médico alcançou a Defensores de Chaves e foi conduzindo devagar
na esperança insensata de que o tempo rodasse muito depressa e três quarteirões
adiante se encontrasse, quarentão e feliz, numa vivenda no Estoril, rodeado de
galgos com pedigree, boas encadernações e filhos louros, porque o que sabia à
frente de si era uma tristeza inquieta, agitada, de que não descortinava o termo,
se o houvesse. Normalmente costumava combater esses estados dormindo de
hotel em hotel (do Rex para o Impala, do Impala para o Penta, do Penta para o
Impala) e sofrendo de manhã o impacto esquisito de acordar em quarto
impessoal e estranho, aproximar-se da janela e ver lá em baixo a cidade do
costume, o trânsito do costume, a gente do costume, e eu virado apátrida na
minha terra, a lavar os sovacos com uma amostra de sabonete Feno de Portugal,
oferta da gerência, e a deixar as chaves na recepção numa falsa desenvoltura de
férias.
O psiquiatra rodeou a praça José Fontana, onde pela primeira vez, vindo do
liceu, vira dois cães em acto de amor perseguidos pela notável ira puritana da
vendedora de castanhas que no verão tripulava um triciclo de gelados, exibindo
desse modo a invejável maleabilidade dos políticos nacionais; durante sete anos
atravessara diariamente as árvores desse jardim povoado em doses equitativas
de reformados e de crianças, com o urinol subterrâneo debaixo do coreto
guardado por um cérbero camarário, a curtir desde a aurora os vapores
oscilantes de uma bebedeira crónica: o médico imaginava-o sempre
secretamente casado com a mulher das castanhas-gelados, a quem se unia num
ruído de ventosa à aproximação do crepúsculo, misturando os arrotos do álcool
com o hálito polar da baunilha, na câmara nupcial das retretes decoradas por
desenhos explicativos, tal como os cartazes dos postos de socorros elucidam as
peripécias da respiração boca a boca. Um homossexual idoso, de bochechas
maquilhadas, passeava-se entre os bancos observando os alunos com olhares de
rebuçado peganhento. E um senhor digno, de pasta, instalado junto ao chafariz,
negociava fotografias pornográficas com o espírito missionário de quem
impinge, às portas das igrejas, pagelas de santinhos aos meninos da primeira
comunhão.
Ao chegar à Duque de Loulé os anúncios luminosos dos restaurantes chineses,
caracteres cuneiformes culinários para uso dos parolos, fizeram-no hesitar,
indeciso, tentado pelos nomes exóticos dos pratos, mas pensou imediatamente
que jantar sem companhia o faria sentir-se ainda mais só, a equilibrar-se sem
sombrinha no arame da sua aflição perante um público indiferente, de forma que
deixou o carro mais abaixo, quase encostado a uma cabine telefónica igual
àquela cujo retrato vira semanas atrás numa revista, atulhada de corpos
sorridentes, com a legenda: Novo Record Do Mundo: Trinta E Seis Estudantes
Ingleses Numa Cabine Telefónica. O auscultador pousado no descanso deu-lhe
gana de ligar para a mulher (Amo-te, nunca deixei de te amar, vamos lutar
juntos por nós) e por isso afastou-se quase a galope e embarafustou pelas escadas
do Noite e Dia a caminho do snack-bar da cave, antecipando-se ao porteiro, que
se parecia com o seu professor da quarta classe, no acto de empurrar a porta de
vidro da entrada.
Nas manjedouras de balcão corrido estabelecia-se uma espécie de
solidariedade de Última Ceia que ajudava o psiquiatra a manter-se de pé por
dentro, como se o cotovelo da esquerda e o cotovelo da direita funcionassem
como talas que aguentavam unidos os ossos estilhaçados do seu desespero e os
impediam de se espalhar no chão como peças de mikado. Instalou-se entre um
rapazinho sério precocemente vestido de bibliotecário triste e um casal em crise
encrespado de silencioso ódio conjugal, fumando com raiva de olhos fixos num
horizonte de divórcio litigioso, pediu ao empregado um bife rápido e um copo
com água, e ficou-se a observar os comensais fronteiros, na maior parte
raparigas que alternavam num cabaré próximo, imóveis sobre os seus cafés
como padres em eucaristias petrificadas. As mãos delas, de enormes unhas
vermelhas, seguravam cigarros americanos de contrabando com cujo fumo
incensavam ritualmente as chávenas, e o médico entreteve-se a descobrir nos
seus rostos, sob a pintura de má qualidade e as expressões postiças aprendidas nos
filmes do Eden, as rugas que as infâncias de privação imprimem para sempre
nos cantos das bocas e nos ângulos das pálpebras, hieróglifos indeléveis da
miséria. Em solteiro frequentava às vezes os bares de prostitutas localizados nas
franjas do Bairro Alto, em becos corcundas escuros como órbitas vazadas, para
as ouvir inventar comoventes adolescências virtuosas à Corin Tellado, diante de
cervejas mornas e de futuros de naufrágio próximos, sem sobreviventes:
Capitalismo do caralho, pensou ele, que nem destas desgraçadas te esqueceste;
morramos nós e viva o cabrão do sistema, mais as guerras mundiais com que
resolves as tuas crises de agonia: baixe-se a taxa de desemprego à custa de
milhões de vítimas, baralhem-se as cartas e recomece-se o jogo, já que, como
rima o outro, afinal o que importa não é haver gente com fome porque assim
como assim ainda há muita gente que come. Acontecia-lhe acompanhá-las de
táxi aos quartos sem elevador onde moravam, e espantava-se dos móveis de
caixotes, dos retratos em molduras de arame e das malas de roupa de cartão,
forradas de papel azul com estrelinhas como o interior dos envelopes: estas tipas,
surpreendia-se o psiquiatra, conservam intactos os gostos e as preferências das
criadas de província que porventura terão sido, apesar do rímel de drogaria e dos
perfumes tipo insecticida com que se disfarçam; subsiste nelas uma autenticidade
atávica que me transcende, a mim educado entre missas do sétimo dia e boas
maneiras, e quando limpam a fronha no lavatório de esmalte e se deitam na
cama para dormir, a lâmpada do tecto, pendurada do fio, sem abajur, à maneira
de um globo ocular desorbitado, assemelha-se ao candeeiro da Guernica
aclarando uma paisagem devastada. E eu estou aqui em pecado mortal como
quem comunga sem se ter confessado. Mastigando o bife, de queixo no prato, o
médico sentia a tensão do casal à sua esquerda aproximar-se do estado gasoso de
uma discussão furibunda, preia-mar varrendo da areia do passado os detritos das
recordações agradáveis, as dificuldades aguentadas em comum, as doenças dos
filhos espiadas num sobressalto de desvelos.
O homem triturava as chaves do automóvel, de narinas muito abertas,
amassando-as nas mãos que tremiam, a mulher, de sorriso de desafio reteso nos
lábios, batia a colher do café no copo de cerveja em ritmo de tambor militar: o
seu perfil, contraído como o de gato que prepara o salto, aparentava-se ao das
carrancas dos chafarizes plasmadas em cóleras de pedra. O meninobibliotecário,
do outro lado, explicava à senhora gorda que o acompanhava o
enredo de O Primo Basílio, com a digna auto-suficiência dos fortemente
estúpidos: adivinhava-se nele o juiz do Supremo ou o presidente de assembleia
geral de clube desportivo debitando com ar profundo inanidades pomposas, e o
psiquiatra teve pela criatura o fluxo de pena sincera que dedicava aos que não se
apercebiam da existência dos outros, muralhados de irremediável imbecilidade.
Dois estrangeiros desceram as escadas e instalaram-se junto das raparigas do
cabaré, que começaram imediatamente a agitar-se à laia de perdigueiros na
vizinhança da caça: uma loira de seios grandes cobertos por uma camisola muito
justa sorriu-lhes com descaro e o médico sentiu distender-se nas calças uma
erecção fraternal, enquanto os estrangeiros se consultavam em cochichos um ao
outro sobre a estratégia a seguir: via-se claramente que balançavam entre o
embaraço e o desejo, divididos. A loira retirou uma boquilha de meio metro da
carteira e pediu lume a um deles, mirando-o sem desfitar: o peito cresceu na
camisola apertada à maneira de uma pomba com cio, e o estrangeiro recuou o
tronco assustado por aquela planta carnívora que o ameaçava; vasculhando nos
bolsos acabou por encontrar uma caixa de fósforos reclame de uma companhia
de aviação; uma chama aflita ondulou: ainda agora chegaste meu sacrista,
pensou o médico iniciando a mousse e observando o rosto atónito do estrangeiro,
ainda agora chegaste e já te vais vir como nunca sonhaste que te pudesses vir na
puta da vida, como nunca te vieste nos coitos assépticos onde tens fraldicado. E
lembrou-se do momento exacto antes da ejaculação, quando o corpo,
transformado numa vaga que sobe em sucessivos roldões de prazer, cada vez
mais forte, mais pesada, mais densa, estoira de súbito numa explosão de espuma
do tamanho do mundo, em que pedaços nossos voam independentes de nós para
cada canto do lençol, e adormecemos liquefeitos, numa moleza sem cor,
náufragos jubilosos da ternura. Veio-lhe à ideia um fim-de-semana que passara
com a mulher, já depois de separados, numa pequena estalagem do Guincho,
alapada na escarpa contra o vento, as gaivotas e as bofetadas de areia na noite, e
do quarto que ocuparam cara a cara com o mar, com uma varanda estreita
como que planando acima da água. Aí, estendidos lado a lado no colchão,
tinham-se amado com o maravilhamento de se redescobrirem, poro após poro,
em cada carícia, em cada longo beijo, em cada viagem de amor: e mais uma
vez fora ele que não tivera a coragem de continuar, que desistira, aterrado, de
combater pelos dois. Escuta, articulou o psiquiatra dentro de si, rapando a taça de
mousse, escuta: existes tão fundo em mim, com tão numerosas, e musculadas, e
violentas raízes que nada, nem eu mesmo, as poderá jamais cortar; e quando eu
conseguir vencer a minha cobardia, o meu egoísmo, esta lama de merda que me
impede de dar-te e de me dar, quando conseguir isso, quando conseguir de facto
isso, voltarei.
A loira e um dos estrangeiros saíram de mão dada para a Duque de Loulé,
enquanto o outro era por seu turno assediado por uma morena pequenina e
magrinha com aspecto de mosca do vinagre, a exprimir-se em largos gestos de
comédia dellarte frenética. O casal desavindo retirou-se a bufar os seus
rancores: deslocavam-se com cuidados de andor de procissão, de forma a não
verterem nem uma gota da sua raiva mútua. A mãe (ou esposa?) do meninobibliotecário
pediu a conta. Os empregados conversavam com o cozinheiro ao pé
da máquina do café. O último a sair apaga a luz, pensou o médico lembrando-se
do seu receio infantil do escuro. Se me não ponho a milhas lixo-me: não fica aqui
mais ninguém senão eu.
Todas as noites, aproximadamente àquela hora, o psiquiatra fazia o percurso da
auto-estrada e da Marginal para voltar ao pequeno apartamento desmobilado
onde ninguém o esperava, empoleirado no Monte Estoril num prédio
excessivamente luxuoso para a sua timidez. A secretária do porteiro, no átrio
enorme de vidro e de metal, com um lago, plantas de Jardim Botânico e vários
desníveis de pedra, possuía um painel de botões através dos quais uma voz sem
corpo de Juízo Final ecoava nos diversos andares os seus mandamentos
domésticos, com sonoridades divinas de balde roto ou de garagem à noite. O
senhor Ferreira, dono dessa voz tremenda, habitava nos baixos do edifício
protegido por uma porta estilo cofre-forte que o arquitecto devia ter achado
adequada àquele cenário de bunker pretensioso: provavelmente fora ele quem
pintara o inesquecível galgo da loja de móveis, ou concebera o imaginoso lustre
de alumínio: essas três elucubrações notáveis possuíam uma centelha de génio
comum. Não menos notável, aliás, era a sala de estar do senhor Ferreira, de que
o médico se servia às vezes para chamadas telefónicas urgentes, e onde figurava,
entre outras maravilhas de menor monta (um estudante de Coimbra de loiça a
tocar guitarra, um busto do papa Pio XII de olhos maquilhados, um burro de
baquelite com flores de plástico nos alforges) uma grande tapeçaria de parede
representando um casal de tigres com o ar bonacheirão das vacas dos triângulos
de queijo, a almoçarem numa repugnância de vegetarianos uma gazela
semelhante a um coelho magrinho, fitando um horizonte de azinheiras na
esperança lânguida de um milagre. O médico quedava-se sempre de auscultador
em punho, esquecido da chamada, a examinar estupefacto tão abracadabrante
realização. A mulher do senhor Ferreira, que nutria por ele a simpatia instintiva
que despertam os órfãos, saía da cozinha a enxugar as mãos ao avental:
Muito gosta o senhor doutor dos tigrezinhos.
E postava-se ao lado do psiquiatra, de cabeça à banda, a contemplar
orgulhosamente os seus bichos, até o senhor Ferreira surgir por seu turno e
debitar, na célebre voz divina, a frase que resumia para ele o clímax da
admiração artística:
Esses sacanas até parece que falam.
E de facto o médico aguardava a qualquer instante que um dos animais voltasse
para ele os olhos de retrós para murmurar Ai Jesus num gemido de aflição.
Conduzindo o automóvel pela auto-estrada fora, atento aos volumes de sombra
que os faróis sucessivamente descobriam e devoravam, árvores arrancadas do
escuro numa irrealidade trágica, arbustos emaranhados, a faixa sinuosa e
trémula do pavimento, o psiquiatra pensou que, exceptuando a tapeçaria do
senhor Ferreira, o Estoril e ele não possuíam mais nada que os aproximasse:
nascera numa maternidade de pobres e crescera e vivera sempre, até sair de
casa meses antes, num bairro de pobres sem luxo de vivendas com piscina e de
hotéis internacionais. A cervejaria Estrela Brilhante era a sua pastelaria Garrett,
com os bolos substituídos por pipis e tremoços, e as senhoras da Cruz Vermelha
por condutores da Carris, que ao tirarem os bonés de pala para limpar a testa
com o lenço davam a impressão de ficar nus. No andar de baixo dos seus pais
morava a Maria Feijoca, proprietária da carvoaria, e na casa a seguir a Dona
Maria José que negociava contrabandos obscuros. Conhecia os comerciantes pelo
nome e os vizinhos pelas alcunhas, e as suas avós saudavam as vendedoras da
praça em cumprimentos de castelãs. O Florentino, moço de fretes lendário
perpetuamente bêbado, cujos fatos rasgados se lhe agitavam em torno do corpo
como penas soltas, advertia-o sempre que o topava numa familiaridade
decuplicada pelo tinto O seu paizinho é íntimo amigo meu, acenando-lhe da
taberna da rua do cemitério, de que o letreiro Na Volta Cá Os Espero conferia à
morte a importância subalterna de um pretexto: a Agência Martelo (Para Que
Teima Vossa Excelência Em Viver Se Por Quinhentos Escudos Pode Ter Um
Lindo Funeral?) exibia as urnas e as mãozinhas de cera logo acima,
estrategicamente a meio caminho entre a campa e o copo. O médico sentia uma
imensa ternura pela Benfica da sua infância transformada em Póvoa de Santo
Adrião por via da cupidez dos construtores, a ternura que se dedica a um amigo
velho desfigurado por múltiplas cicatrizes e em cujo rosto se procuram em vão
os traços cúmplices de outrora. Quando deitarem abaixo o prédio do Pires, disse
ele pensando no enorme e antigo edifício diante da casa dos pais, por que norte
magnético me orientarei, eu que tão poucos pontos de referência conservo já e
tanta dificuldade possuo em me fabricar novos? E imaginou-se à deriva na
cidade, sem bússola, perdido num labirinto de travessas, porque o Estoril
permaneceria para sempre uma ilha estrangeira a que se achava incapaz de se
adaptar, longe dos ruídos e dos cheiros da sua floresta natal. Do apartamento
avistava-se Lisboa, e olhando a mancha espraiada da cidade ele sentia-a ao
mesmo tempo afastada e próxima, dolorosamente afastada e próxima como as
filhas, a mulher, e o sótão de tecto oblíquo em que moravam (o Pátio das
Cantigas, chamava-lhe ela), pejado de gravuras, de livros, e de brinquedos
desarrumados de crianças.
Desembocou em Caxias com as ondas a pularem sobre a muralha em cortinas
verticais. Não havia lua e o rio confundia-se com o mar no espaço negro à sua
esquerda, gigantesco poço deserto de luzes de navios: os candeeiros vermelhos do
Mónaco assemelhavam-se, atrás dos vidros húmidos do restaurante, a fanais
anémicos na tempestade: jantei aqui quando me casei, pensou o psiquiatra, e
nunca mais houve um jantar miraculoso assim: até da carne assada subia um
gosto de surpresa; no fim do café descobri que não era necessário, pela primeira
vez, levar-te a casa, e isso disparou-me nas tripas uma alegria formidável, como
se tivesse começado, a partir de então, a minha vida de homem, aberta apesar da
iminência da guerra numa vigorosa perspectiva de esperança. Lembrou-se do
automóvel que a avó lhes emprestara para a lua-de-mel e que fora o último
carro do marido e do seu trabalhar ronceiro de berço, lembrou-se da impressão
esquisita da aliança no dedo, do fato que estreara nessa tarde e do seu cuidado
patético com os vincos. Amo-te, repetia ele em voz alta agarrado ao volante
como a um leme quebrado, amo-te amo-te amo-te amo-te amo-te, amo o teu
corpo, as tuas pernas, as tuas mãos, os teus olhos patéticos de bicho: e era como
um cego continuando a conversar com uma pessoa que saiu pé ante pé da sala,
um cego aos berros para uma cadeira vazia, tacteando o ar, palpando com as
narinas um odor que se evaporava. Se vou agora para casa fodo-me, disse ele,
não me acho em condições de enfrentar o espelho do quarto de banho e aquele
silêncio todo à minha espera, a cama fechada sobre si própria à maneira de um
mexilhão pegajoso. E recordou-se da garrafa de aguardente da cozinha e que
podia sempre sentar-se no banco de madeira da varanda, de copo na mão, a ver
o modo como os prédios desciam de cambulhada para a praia, arrastando os seus
terraços, as suas árvores, os seus jardins torturados: acontecia-lhe adormecer ao
relento, de cabeça encostada ao estore, com um barco que saía da barra a
viajar-lhe dentro das pálpebras cansadas, e lograr desse jeito alguma espécie de
sossego, até que um indício de claridade roxa, misturada com pardais, o
despertasse obrigando-o a tropeçar na direcção do colchão à laia de criança
sonâmbula para o seu chichi nocturno. E ao banco da varanda aderiam
excrementos solidificados de pássaros, que arrancava com as unhas e sabiam ao
cré da infância, devorado às ocultas no decurso das breves ausências da
cozinheira, ditadora absoluta daquele principado de caçarolas.
Havia poucos carros no percurso e o psiquiatra guiava devagar, do lado direito
da faixa, colado ao passeio, desde que numa manhã da semana anterior uma
gaivota tresmalhada batera contra o pára-brisas num ruído fofo de penas, e o
médico a vira, já nas suas costas, a estremecer no asfalto a agonia das asas. O
automóvel que o seguia parara junto ao bicho, e ele, afastando-se, notara pelo
espelho que o condutor se apeara, dirigindo-se ao montinho branco nítido no
alcatrão, a diminuir na distância crescente. Uma onda de culpabilidade e de
vergonha que não conseguia explicar (culpabilidade de quê? vergonha de quê?)
inchou-lhe do estômago para a boca num refluxo de azia, e veio-lhe à ideia, sem
motivo aparente, uma severa frase de Tchekov: « aos homens oferece-lhes
homens, não te ofereças a ti mesmo» ; na sequência o psiquiatra recordou-se de
A Gaivota e da profunda impressão que a leitura da peça lhe causara, dos
personagens aparentemente suaves à deriva num cenário aparentemente suave e
divertido (Tchekov considerava-se sinceramente um autor de comédia) mas
carregado da pavorosa angústia da vida que só talvez Fitzgerald soube mais tarde
reencontrar e que surge, a espaços, no saxofone de Charlie Parker, a crucificarnos
de súbito num solo desesperado que resume toda a inocência e todo o
sofrimento do mundo no sopro lancinante de uma nota. Então o médico pensou:
Aquela gaivota sou eu e quem foge de eu é eu também. E não tenho nem a
coragem necessária de voltar atrás e ajudar-me.
Na subida descida do Estoril, ao cruzar o volume cinzento do Forte Velho com o
seu enorme e horroroso peixe de metal suspenso sobre os pares que dançavam
(Há quanto tempo não vou eu ali?) o psiquiatra tornou a visualizar o apartamento
deserto, o espelho do quarto de banho e a garrafa da cozinha ao lado do púcaro
de metal, únicas bóias de salvação no desolado silêncio da casa. Cá fora, à
entrada do edifício, as folhas secas dos eucaliptos restolhavam constantemente
sopradas pelo vento alto, no rumor de dentaduras postiças que se entrechocam.
Os automóveis dos inquilinos, quase todos luxuosos e grandes, encostavam os
narizes à parede à maneira de crianças amuadas. Na sua caixa do correio,
tirando um ou outro prospecto esquecido e a folha de propaganda semanal do
CDS que se apressava a introduzir, sem a ler, no cacifo da senhoria, declarando
enfaticamente, a César o que é de César, nunca havia nenhuma carta para ele:
sentia-se como o coronel de García Márquez, habitado pela solidão sem remédio
e pelos cogumelos fosforescentes das tripas, aguardando notícias que não
chegavam, que não chegariam jamais, e apodrecendo lentamente nessa espera
inútil alimentada de um vago milho de promessas. De modo que quando o
semáforo passou a verde numa súbita mudança de humor, voltou à direita e
dirigiu-se para o Casino.
No topo de uma espécie de Parque Eduardo VII em ponto pequeno bordado de
palmeiras hemofílicas cujos ramos rangiam protestos de gavetas perras, de
hotéis de Visconti habitados por personagens de Hitchcock e de guardadores de
automóveis manetas, de olhos de fome escondidos nas palas dos bonés como
pássaros ávidos presos na rede franzida das sobrancelhas, o edifício do Casino
assemelhava-se a um grande transatlântico feio adornado entre vivendas e
árvores, batido pelas ondas de música do Wonder-Bar, pelos gritos de gaivotas
roucas dos croupiers e pelo enorme silêncio da noite marítima em torno de que
subia um odor denso de água de colónia e de mênstruo de caniche. Os comboios
partindo para Lisboa da estação do Tamariz levavam consigo, nos bancos vazios,
os versos desse Dy lan Thomas de que tanto gostavas
In the final direction of the elementary town
I advance for as long as forever is.
E o médico imaginou-se a cabecear numa carruagem deserta, duplicado do
outro lado do vidro através de casas, fragmentos de muralha e luzes de navios, ao
ritmo das palavras do poeta que a mulher costumava transportar consigo para a
cama e com quem mantinha um diálogo silencioso e perfeito que o excluía:
for the lovers
Who pay no praise or wages
Nor heed my craft or art.
Dy lan Thomas foi o tipo de quem tive até hoje mais ciúmes, pensou o
psiquiatra abandonando o automóvel à sombra protectora de um autocarro de
turistas, cujo condutor explicava a um chofer de táxi maravilhado os méritos
íntimos das francesas de uma certa idade, capazes de tornarem o coito leve e de
fácil digestão como um suflé de espargos. Odiei desesperadamente Dy lan
Thomas e os poemas tumultuosamente convincentes com que esse gordo bêbado
ruivo viajava contigo a países interiores a que eu não possuía acesso, vizinhos dos
sonhos de que me chegavam esbatidos ecos através das palavras soltas que
mastigavas num êxtase de sereia naufragada. Odiei Dy lan Thomas sem que o
soubesses sequer, disse o médico caminhando sobre a relva húmida da noite na
direcção do convés do Casino e dos seus tripulantes mascarados de grooms
majestosos trocando cinzeiros em gestos lentos de vestais, odiei esse rival defunto
vindo do nevoeiro das ilhas do norte com um sorriso de corsário pensativo nas
bochechas inocentes, esse sacana galês que rebentava os grossos diques da
linguagem com ventosas frases cheias de sinos e de crinas, esse amante de
espuma, esse fantasma de sardas, esse homem que morava numa garrafa de
uísque como os barcos dos coleccionadores, ardendo na sua chama de álcool
com dolorosa graça de fénix refractária. Caitlin, disse o psiquiatra trocando com
o porteiro cabalísticos sorrisos vagos de Chirico, Caitlin de Nova Iorque te chamo
under the milk wood neste novembro de 1953 em que morri, com uma ilha a
desvanecer-se na paisagem da cabeça cercada pela raiva voraz dos albatrozes,
Caitlin um dia destes desço ao Tamariz e tomo um comboio eléctrico para o país
de Gales onde me esperas diante de um chá tão triste como a cor dos teus olhos,
sentada na sala em que nada mudou, com um espesso fumo de pub a separar-te,
sólido, da pressa dos meus beijos. Caitlin este mugido aflito de farol é o meu
berro de boi saudoso que te procura, este apito modulado de locomotiva o canto
de amor que sou capaz, este barulho de tripas um comovido sobressalto de
ternura, estes passos na escada o meu coração ao teu encontro: vamos voltar ao
princípio, passar a vida a limpo, recomeçar, jogar crapaud ao serão, beber licor
de ginja, deixar o caixote do lixo lá fora, num estrépito de palhaço pobre, entre o
espanto dos vizinhos e dos gatos, abrir uma lata de caviar e comer lentamente os
grãozinhos de chumbo até que, tornados cartuchos de caçadores furtivos,
disparemos um para o outro no fogo-de-artifício de uma explosão final, e será
um pouco essa, Caitlin, a nossa maneira de partirmos.
No átrio do Casino uma excursão de inglesas desembarcadas de um autocarro
tão sumptuoso como a sala de estar de Clark Gable, de vidros substituídos por
quadros de Van Ey ck, borbulhava pelas bocas pálidas exclamações de
entusiasmo comedido. Um coronel colonial a estalar de black-velvets no smoking
branco repartia os bigodes grisalhos por duas indianas de sari, enigmáticas como
rainhas de paus, que deslizavam chão fora como se ocultassem rodas de
borracha na complicação das saias. Suecos transparentes de olheiras de insónia
devido a longos dias de seis meses amparavam-se a mexicanos cor de azeitonas
de Elvas, que John Way ne matava filme após filme num júbilo de insecticida
eficaz. Condessas polacas decrépitas inclinavam-se umas para as outras como
pontos de interrogação desmoronados: o rouge flutuava-lhes em torno das rugas
sem aderir à pele, pólen que atraía insectos senegaleses de grandes órbitas
globulosas, em cujos dedos cintilavam dezenas de anéis papais. De quando em
quando, as coxas calçadas de meias pretas do ballet francês, ou as mandíbulas
desmesuradamente abertas do engolidor de espadas tibetano, escapavam-se por
um intervalo das cortinas do restaurante à laia de jactos de vapor por frestas de
panela. Uma fadista embrulhada no xaile ausentava-se numa meditação trágica
de Fedra, segurando a mãos ambas um copo de gin ritual. Cavalheiros obesos, de
colete desabotoado, ou abandonavam o urinol com ar aliviado de regresso de
confessionário, ou ressonavam ao acaso dos sofás. Atrás do guarda-vento das
máquinas tilintavam centenas de mealheiros vorazes, bolsando o excesso dos
estômagos em babetes cromados. Estar aqui, pensou o médico ultrapassando
uma cadeira de rodas com um senhor sem pernas dentro, é como acordar de
repente a meio da noite com a impressão de a cama ter mudado de posição no
escuro e de nos acharmos num país diferente, longe das nossas águas territoriais
familiares, sob esta luz branca vertical de ringue de boxe que actua como um
revelador mostrando-nos demasiadas rugas nos espelhos, acordar de repente a
meio da noite e mergulhar num pesadelo derisório povoado de uma multidão
inquieta que busca na agitação sem razão a sua razão de se agitar: como eu,
acrescentou o psiquiatra, ao mesmo tempo a fugir e à procura em sucessivos
círculos sem finalidade e sem fim, cão sem cabeça mas com duas caudas que se
perseguem e se repelem, gemendo tristemente latidos melancólicos de solitário.
Substituíra a minha existência estrita pelas pobres girândolas ocas de um
escriturário delirante rodopiando alegrias fictícias de cartolina; transformara a
vida num cenário de plástico, imitação esquemática de uma realidade por
demais complexa e exigente para a minha reduzida panóplia de sentimentos
disponíveis. E assim, insignificante pierrot de um carnaval frustrado, me
consumia rapidamente numa labaredazinha portátil de angústia.
O médico trocou duas notas de conto de réis em fichas de quinhentos escudos e
instalou-se na sua banca francesa favorita, quase vazia de parceiros por estar a
dar jogo irregular. Sentia nas costas o frenesim das mesas de roleta, cuja
morosidade o impacientava, com os croupiers contando intermináveis pilhas de
fichas e um cortiço de apostadores à volta, inclinados para o pano verde num
apetite de louva-a-deus. O psiquiatra reparou especialmente numa inglesa muito
alta e muito magra, com um vestido de alças dependurado do cabide das
clavículas, reluzente ainda de cremes para o sol, as mãos esqueléticas a
escorrerem fichas que colocava sobre os ombros dos outros em gestos angulosos
de grua. O croupier anunciou Pequeno, o pagador recolheu as fichas perdentes e
dobrou as ganhantes: o médico viu que a mulher sentada à sua esquerda anotara
três pequenos seguidos depois de dois grandes, de modo que empurrou quinhentos
para a zona do Grande e ficou à espera. Primeiro apalpar, disse-se ele, conforme
a técnica da minha mãe na praça: ao menos que o tanto tê-la visto regatear fruta
de alguma coisa me sirva. E sorriu de imaginar o que a mãe, criatura prudente e
comedida, julgaria se o topasse ali arriscando quantias que ela considerava
exorbitantes, deitando-se tarde para chegar ainda mais tarde ao hospital no dia
seguinte, a descer velozmente o plano inclinado de uma ruína segura: histórias
trágicas de fortunas evaporadas no Casino corriam tetricamente nos serões da
família, narradas em tom cavo pelos aedos da tribo. A tia Mané, octogenária
histórica cujo sorriso abria um ziguezagueante caminho através de pinturas e de
cremes ressequidos, sumira as pratas da casa ao bacará e utilizava uma cautela
de penhor em lugar de bilhete de identidade.
Pequeno, disse o croupier pousando o copo dos dados e embrenhando-se de
imediato em conversa sussurrada com o fiscal, de cabeças docemente inclinadas
como apóstolos da última Ceia: Jesus e S. João partilhando as delícias do Espírito
Santo. O pagador retirou a ficha do médico numa manobra destra de língua de
camaleão caçando uma mosca imprevidente. A mulher anotou, conscienciosa, o
Pequeno, era gorda e loira, já gasta, e usava um casaco de peles sintético nos
ombros moles: o perfil dela assemelhava-se ao de Lavoisier no retrato oval do
livro de Física do 4.o ano do liceu, e jogava duzentos e cinquenta escudos de cada
vez na determinação raivosa de quem perde obstinadamente. Do lado oposto da
mesa uma velha coçada atirava vinte escudos teimosos para os ases na
esperança de um milagre. Dois sujeitos com ar de mestres-de-obras prósperos
hesitavam de fósforo nos dentes: a pastilha elástica dos naturais de Tomar, pensou
o psiquiatra apostando de novo no Grande, chocos com tinta, Mercedes Diesel
amarelo torrado e Vila Mélita na fachada da casa. A mulher do leopardo de
plástico absteve-se. Saiu um 12, um 13, um 14, um 12, um 18: os mestres-deobras
colocaram cinco mil escudos cada no Pequeno. Um rapaz ruivo surgiu da
nuca do médico e lançou quinhentos no Grande: já me fodi, pensou o psiquiatra
sem razão aparente a não ser um aperto avisador no esófago. Estendeu o braço
para o seu dinheiro e ia pescá-lo quando o croupier levantou o queixo e disse
Pequeno com uma indiferença cruel. Croupiers e analistas puta que vos pariu.
Digo-te adeus e como um adolescente tropeço de ternura por ti, murmurou o
médico para a ficha que o pagador lhe levava, arrumando-a junto às que
amontoava à sua frente, se esta gaita continua assim de aqui a nada estou a tirar
as peúgas para as botar nos ases, ganhar uma camisa fórmula um e suicidar-me
engolindo uma dose excessiva de rodelas de cem paus. A mulher gorda
aconchegou-se na cadeira e a coxa dela tocou a do médico, que a seguiu no
palpite do Grande por gratidão: sentia-se menos só desde que uma prega de
carne alheia lhe comprimia o joelho. Os empreiteiros mudaram para o Pequeno,
o rapaz ruivo, despeitado, afastou-se, a resmungar: havia sempre um ruivo nas
turmas do Camões, recordou o psiquiatra, um ruivo, um bucha e um de óculos
nas filas da frente; o bucha era o pior na ginástica, o de óculos o melhor em
geografia e o ruivo a vítima favorita dos professores para se vingarem das
partidas anónimas: mijadelas no cesto dos papéis, latidos a meio da leitura dos
Lusíadas, palavrões a giz no quadro preto; no termo do segundo período, os pais,
também ruivos, mudavam-nos para colégios particulares se calhar reservados a
ruivos onde se emprestavam fotografias pornográficas em completa liberdade,
negros atléticos sodomizando cadelas, padres de batina a masturbarem-se no
confessionário, homossexuais sem arestas entregues a orgias desfocadas. A
mulher gorda sorriu-lhe: faltava-lhe um incisivo em cima e possuía as gengivas
pálidas de Vasco da Gama ao quadragésimo dia de avitaminose.
Grande, proclamou o croupier que se ria respeitosamente de uma piada
qualquer do fiscal.
É curioso como as graças dos superiores têm sempre humor, verificou o
médico repetindo a frase surpreendida de um irmão seu a quem a bajulice
espantava como um fenómeno incompreensível: o pagador debruçou-se para o
croupier que lhe repetia a anedota do chefe, o qual aprovava gravemente com
um sorriso solene, ajeitando o ângulo dos colarinhos:
É ou não é, Meireles?
O Meireles, que trocava fichas a um corcunda, ergueu as sobrancelhas sem
levantar os olhos do trabalho, na careta entendida com que as tias do psiquiatra
respondiam, durante a contagem das malhas do tricot, às perguntas dos sobrinhos.
Será que cresci, que cheguei realmente a crescer, interrogou-se o psiquiatra
correspondendo com o joelho à pressão de anca da mulher do leopardo de
plástico, a avaliá-lo de viés com lenta pálpebra sabida, cresci de facto ou
permaneci um puto assustado de cócoras na sala entre gigantescas pessoas
crescidas que me acusam, fitando-me em silêncio numa hostilidade horrível, ou
tossindo de leve, a coberto de dois dedos, a sua desaprovação resignada? Dêemme
tempo, pediu ele a essa roda de ídolos da Ilha de Páscoa que o perseguia de
um amor ferozmente desiludido, dêem-me tempo e serei exactamente o que
vocês desejam como vocês desejam, sério, composto, consequente, adulto,
prestável, simpático, empalhado, miudamente ambicioso, sinistramente alegre,
tenebrosamente desingénuo e definitivamente morto, dêem-me tempo, give me
time
Only give me time
time to recall them
before I shall speak out.
Give me tim
time.
When I was a boy
I kept a book
to which from time
to time,
I added pressed flowers
until, after a time,
I had a good collection.
But the sea which no one tends
is also a garden
when the sun strikes it
and the waves
are awakened.
I have seen it
and so have y ou
when it puts all flowers
to shame.
Tempo, repetiu o médico, necessito imperiosamente de tempo para me vestir
de coragem, colar todos os meus ontens no álbum de retratos (Whod think to find
y ou in a photograph, perfectly quiet in the arrested chaff), ordenar as feições do
meu rosto, verificar ao espelho a posição do nariz, e seguir para o dia que
começa com a sólida determinação de um vencedor. Tempo para te esperar à
saída do ministério, subir contigo as escadas, meter a chave à porta e cambulhar
abraçado a ti, sem acender a luz, para a cama vagamente aclarada pelos
ponteiros fosforescentes do despertador eléctrico, atrapalhado pelo excesso de
roupa e pelos soluços de ternura, reaprendendo o Braille da paixão. A mulher
gorda pousou-lhe no braço as unhas compridíssimas vermelhas escuras: o punho
dela, idêntico ao de um lagarto ressequido, ornava-se de uma pulseira símilefiligrana,
com uma enorme medalha de Nossa Senhora de Fátima tilintando
contra uma figa de marfim, e o psiquiatra sentiu-se prestes a ser devorado por
um réptil terciário em cujas mandíbulas o sangue do baton revelava claramente
monstruosas intenções assassinas. Os olhos do dinossauro fixavam-no na
intensidade postiça do rímel, sob as sobrancelhas depiladas até à espessura de
uma curva de tira-linhas, e o peito subia e descia numa cadência de guelra,
conferindo aos seus múltiplos colares o balançar de rins dos botes ancorados. Os
dedos treparam aracnideamente a manga do médico beliscando-lhe de leve o
polegar, enquanto a coxa absorvia completamente a sua e um salto aguçado lhe
premia o pé, a arrancar-lhe o calcanhar numa carícia malévola. O corcunda,
instalado à esquerda, chupava ruidosamente pastilhas para a garganta
disseminando no ar um aroma de inalações de asmáticos: se eu fechasse com
força as pálpebras por um segundo poderia supor-me sem esforço no quarto de
Marcel Proust, escondido atrás da pilha de cadernos manuscritos da Recherche
du Temps Perdu: cest trop bête, assim costumava ele definir o que escrevia, je
peux pas continuer, cest trop bête. Querido tio Proust: o papel de parede, a
lareira, a cama de ferro, a tua difícil e corajosa morte: mas achava-me na
realidade instalado a uma mesa de jogo do Casino, e a solidão roía-me por dentro
como um ácido doloroso: a ideia da casa vazia apavorava-me, a solução de
tornar a dormir na varanda fazia-me gemer de antecipados lumbagos. De alma
em pânico enxotei a derradeira ficha para o Grande: se ganhar vou direito ao
Monte, enfio-me nos lençóis e masturbo-me a pensar em ti até o sono vir (receita
de sucesso relativo); se perder convido esta jibóia idosa para uma orgia modesta
de acordo com o casaco de plástico dela e os meus jeans no fio, e à medida de
um fim de mês penoso: ignorava sinceramente qual destas duas catástrofes
escolher, dividido com horror idêntico entre o isolamento e o ofídio. Uma
espanhola sumptuosa roçou por ele a nádega magnífica, almofada bordada para
mais felizes cabeças: o período das vacas magras seria sem dúvida o seu destino
perpétuo e acomodava-se conformadamente a ele numa resignação bovina: um
banco de jardim algures esperava com paciência a sua velhice
melancolicamente desocupada, e podia bem ser que às quartas-feiras o
irmão mais novo lhe desse de jantar em sua casa, acompanhando a carne assada
de conselhos e repreensões.
A mãe sempre disse que nunca terias juízo.
E provavelmente não só nunca teria juízo como (mais grave ainda) não
alcançaria a espécie de felicidade que a ausência desse esquisito atributo traz
consigo, lastro sem o qual se voa aos agradáveis píncaros de uma loucura
divertida, sem maçadas, sem preocupações, sem planos, ao sabor da
adolescência assumida como estado de alma, como vocação ou como sina. A
mãe sempre disse.
A mãe sempre disse tudo. E parecia-me que o fiscal adquiria pouco a pouco o
jeito profético dela, as pálpebras magoadas, a testa enrugada, o cigarro aceso
espiralando na ponta do braço elipses de desistência:
O que é que se pode esperar deste rapaz?
Nada, afirmou em voz alta numa espécie de raiva que sobressaltou o marreco,
no exacto instante em que o croupier pousava o copo, erguia o queixo, olhava em
torno, apertava o laço do pescoço e informava
Pequeno
ditando sem que o soubesse uma sentença definitiva.
Você tem mesmo a certeza de que é médico?, perguntou-lhe o ofídio
olhando-lhe com desconfiança os jeans rapados, a camisola gasta, a desordem
descuidada dos cabelos. Estavam ambos no pequeno automóvel do psiquiatra
(Não sei se caibo nesta coisa), junto ao impressionante autocarro de turistas que
recebia de volta a sua carga de americanas velhas em vestidos de noite, de
óculos suspensos do pescoço por fios de prata como as chuchas dos bebés,
acompanhadas de sujeitos rubicundos parecidos com o Hemingway dos retratos
finais.
Eu não costumo desconfiar das pessoas mas nunca se sabe, acrescentou ela
examinando policialmente a cédula profissional que o outro lhe estendia, e já vou
tendo a minha conta de barretes. Acredita-se acredita-se e vai na volta truca:
passa para cá a carteira ó ai ó linda e fica-se na estrada a ver navios. Você
desculpe, não é nada consigo, paga o justo pelo pecador como dizem os padres e
nunca é demais acautelar. Tenho um primo por parte do meu pai enfermeiro em
São José, no Serviço Um, o Carregosa, conhece? Baixo, forte, careca, um bocado
gago, maluco pelo Atlético? Usa o emblema por cima da bata, jogou nos
juniores, a mulher dele entrevou-se, só diz raisparta raisparta? O senhor perdoe
as minhas prudências mas o Mendes dizia-me sempre: Dóri (chamo-me Dóri)
põe-te a pau com os estranhos que mais vale prevenir do que remediar, até ouvi
essa a uma senhora que tirou os peitos no instituto do cancro, apanhava malhas,
agora apanha balões de soro, está quase tão mal como o Mendes, coitado, que
depois da revolução teve de emigrar para o Brasil que remédio, deixou-me uma
carta querida a garantir que me mandava para ao pé dele, que nunca gostara de
ninguém como me amava a mim, era só uma questão de meses até arrumar a
vida dele e pronto, mulatas nem vê-las que cheiram mal. Mais mês menos mês
tomo o boingue para o Rio de Janeiro, ele é doutor de finanças e económicas não
vai secar sem sacar emprego que nunca vi competência como o Mendes,
trabalha que nem cão o desgraçado apesar de fraquinho dos pulmões e ao depois
não é só isso, é a delicadeza, os modos, a forma de tratar uma mulher, adivinha o
que a gente quer, nunca me bateu, quase todas as semanas eram flores, eram
jóias, eram jantares no Comodoro, eram cinemas. Eu dizia-lhe, é claro, ó
filhinho não é necessário tanto luxo mas o Mendes sabia que eu me pelava, não
fazia caso, era um santo de altar, estou a vê-lo com as patilhas muito bem
tratadas (dei-lhe uma filichaive no Natal), a camisa rosa negra impecável, o
verniz das unhas a brilhar.
Pausa.
Porque é que você não põe uma gravata de seda natural, um casaco
piêdepule, fixador brilcrime na cabeça? Nunca vi um médico tão mal amanhado,
tão à mecânico, os doutores devem de ter representação, não é, quem é que se
quer tratar com um psiquiatra pope esgadelhudo? Eu quando vou à caixa exijo
respeito, seriedade, percebe-se logo pela cara das pessoas se são competentes ou
não, não achas, os especialistas como deve de ser usam colete, têm
bêémedablius prateados, casas com lustres, torneiras doiradas que são peixes a
deitar água, entra-se lá nota-se o dinheiro que o quinane anda pela hora da morte,
diga-me lá o que se faz hoje na vida sem dinheiro, eu sem dinheiro sinto-me a
morrer, é a minha gasolina, topas, tirem-me a minha carteira de crocodilo e fico
perdidinha da silva, estou habituada aos luxos que é que queres, talvez não
acredites mas o meu pai era professor de veterinários em Lamego.
Tirou um Camel de contrabando de uma horrorosa bolsa de cartão imitação de
jacaré, acendeu-o com um isqueiro de baquelite a fingir tartaruga. O psiquiatra
reparou que os sapatos dela, de tacões inacreditavelmente altos, necessitavam de
meias solas, e que grandes vincos sem graxa estriavam o cabedal no peito do pé:
saldos da Praça do Chile, diagnosticou ele. As raízes das madeixas loiras nasciam
grisalhas no local da risca, e o pó-de-arroz tentava sem sucesso mascarar as
múltiplas rugas fundas ao redor dos olhos e ao longo das bochechas moles,
pendentes do queixo em cortinas flácidas de carne. Devia trazer as fotografias
dos netos (a Andreia Milena, o Paulo Alexandre, a Sónia Filipa) no porta-moedas.
Para a semana que vem faço trinta e cinco anos, informou ela com descaro.
Se prometeres pôr um smoquingue e levar-me a jantar a um restaurante decente
o mais longe possível dos Caracóis da Esperança, convido-te: desde que o
Mendes se foi embora tenho um vazio no coração.
E apalpando-me o ombro:
Sou uma pessoa muito afectuosa, chiça, não sei viver sem amor. Tu não
deves ganhar mal, hã, os médicos esfolam, se te arranjasses, te penteasses,
comprasses um fatinho na Avenida de Roma talvez ficasses jeitoso embora isso
para mim, o dinheiro, o aspecto, não tenha importância nenhuma, são os
sentimentos que me interessam, a beleza da alma não é? Um homem que me
trate bem, me leve a passear a Sintra aos domingos e chega para eu andar feliz
como um canário. Sou muito alegre percebes?, muito sossegada, muito caseira.
Eu cá meu filho pertenço ao género amor e uma cabana, o meu banho de
espuma, a minha depilação das pernas, conta aberta na pastelaria, não exijo
mais. Tens aí duzentos escudos que me emprestes para o táxi para Lisboa que
comboios, comigo, santa paciência, tens duzentos escudos com certeza, deves
ganhar bem, és um cavalheiro, não aguento caramelos que não sejam
cavalheiros, olha que gandulos sempre com a caralhada na boca puta que os
pariu. Desculpa falar-te assim mas é que eu sou franca, não sou gaga, sei o que
digo, a bem tudo a mal nada e ao depois simpatizo contigo, posso dar-te muitos
gozos se gostares de mim, me compreenderes, me pagares a renda da casa, eu
quero é dedicar-me, ter alguém que me leve ao cinema e ao café, me pague a
renda da casa, me trate como deve de ser, goste do meu basset, me aceite. Por
acaso podíamos ser felizes os dois, tu e eu, não achas, quando é que deslizas os
duzentos bagos? Tens medo que isto seja conversa da fiada? Ó filho eu paixões é
a primeira vista, não há nada a fazer, caíste-me no goto, deixa cá pôr os óculos
para te observar melhor, te amar ainda mais.
Tirou primeiro um estojo, voltou a empurrá-lo para o fundo da carteira (Poça
estes são os de longe) e extraiu de uma confusão de lenços de papel, de bilhetes
de eléctrico e de documentos amarrotados, um par de lentes grossas como um
caleidoscópio atrás das quais as pupilas desapareceram, dissolvidas na espessura
do vidro: o psiquiatra sentiu-se examinado por um microscópio de má qualidade.
Ai filho mas tu és novíssimo, exclamaram as dioptrias espantadas, tens para
aí a minha idade, trinta e três, trinta e quatro o máximo, não? Apostava duzentas e
cinquenta de percebes que tens trinta e quatro, eu nisto de anos nunca me engano,
se fosse assim com o totobola já tinha aberto uma butique no Areeiro há mais de
um colhão de séculos, o Mendes jurou-me pelos ossos do irmão que está debaixo
da terra que me punha uma na Penha de França e logo haviam de vir os
comunistas a roubar a gente, a enrabar isto tudo, foi-se o projecto por água
abaixo mas se pensas que desisti estás mais enganado que um marido, aqui a
Dóri é teimosa dos cascos, no amor e nos negócios sou um cão de fila, não largo,
tenho a dentuça afiada. Olha lá a propósito quanto é que tens no banco, para cima
de cem contos não, confessa-te aqui à Dóri, se quisesses abríamos um
cabeleireiro de sociedade, Salão Dóri ficava giro não achas, letras luminosas cá
fora, decência, clientela rica, empregadas escolhidas a dedo, música de fundo,
cadeiras de veludo, uma coisa como no cinema, eu ficava à caixa que o meu
forte é o comércio, estive dez anos na capelista do Mendes e nunca dei prejuízo à
Havaneza de Arroios, fechou porque tinha de fechar, os negócios gastam-se,
topas, é como a pila dos homens, a tua deve estar toda gastinha meu marau mas
a Dóri compõe, é preciso é a gente saber tocar guitarra de uma corda só, e ao
depois os fornecedores da Havaneza metiam a unha como o caneco e
aconteceu-me encontrar o Leal, um que cantava na rádio conheces com certeza,
esteve vai não vai para ir à televisão, dedicou-me músicas lindas, género
romântico, até chorei já vês, uma estampa de moço apessoado não desfazendo,
chegaram a convidá-lo para uma fotonovela da Crónica, a história de um
engenheiro filho de uma condessa que gosta da criada da mãe que afinal é neta
de um marquês e não sabia, o marquês morava em Campo de Ourique numa
cadeira de rodas, eu bem que insisti com ele Ó Leal tu aceita-me, tu aceita-me o
furo que andas aos caídos e tens cara de engenheiro mas o rapaz tinha orgulho e
fodeu-se por isso, ainda se fosse um filme respondia-me ele, ainda se fosse um
filme ia pensar desde que me deixassem dormir a sesta, um filme indiano, tinha
aquela mania dos filmes indianos, quem o quisesse encontrar que o procurasse à
saída do Aviz, parecia-se com o Arturo de Cordoba e com o Tony de Matos, a
mesma voz, os mesmos caracóis bem penteados, a cintura assim fininha, fazia
pesos e halteres às terças e quintas no Ateneu, em Caxias e na praia era uma
razia nas pequenas, o Mendes aceitou a coisa, perdoou-me, ele sabia do meu
temperamento e perdoava, o Leal casou-se com a dona de uma ourivesaria da
Amadora, uma cabra safada que nem mamas tinha viúva de um embarcadiço
que chupou umas lecas da merda no contrabando dos rádios, se calhar dava a
cona da mulher no porta a porta, eu andei a pastilhas para dormir um mês, só
suspirava, até o gosto pelo folhetim perdi, o Mendes fazia-me chá de tília,
pobrezinho, aconselhava-me com bons modos, ó Dóri se o médico do coração
deixar vou para a ginástica do Ateneu, sofria de angina do peito, coitado, para
subir as escadas era uma desgraça, desatava logo a arfar, sei lá mais de quantas
vezes se me ia ficando em cima, ó Dóri deixa lá que tens aqui o teu Riquinho, o
Mendes chamava-se Reinaldo, Reinaldo da Conceição Mendes mas eu tratava-o
por Riquinho porque ele gostava, emagreci cinco quilos com a infelicidade, ah
conho que se pilhasse a ramelosa partia-lhe um chifre com os dentes, fressureira
de um corno, puta esquentada, estoirou este outubro de um aneurisma
abençoado, paguei uma missa de acção de graças no Beato, fiquei com a rata
aos saltos para o resto da vida, o padre a latinar no altar e eu a dizer de joelhos
Mal tu sabes pelo que é que rezas meu magano, viva o Benfica que já cá não está
quem me enrabou.
O médico alcançou a marginal e voltou para o Monte Estoril: havia uma boîte
no sopé da colina onde não corria grandes riscos de tropeçar em pessoas que o
conhecessem: envergonhava-o ser visto na companhia daquela mulher
demasiado ruidosa, com pelo menos o dobro da sua idade, lutando contra a
decrepitude e a miséria através de uma encenação absurda ao mesmo tempo
ridícula e tocante, que o fez ter vergonha da sua vergonha: no fundo não eram
diversos um do outro, e em certo sentido os seus frenéticos combates
aparentavam-se: fugiam ambos à mesma solidão impossível de aguentar, e
ambos, por falta de meios e de coragem, se abandonavam sem um gesto de luta
à angústia da aurora como mochos aterrados. O médico lembrou-se de uma
frase de Scott Fitzgerald, tripulante aflito do barco em que seguiam, deixado em
terra numa viagem anterior, de coração exausto alimentado pelo oxigénio
amargo do álcool: na noite mais escura da alma são sempre três horas da manhã.
Estendeu a mão e afagou a nuca do dinossauro numa ternura sincera: salve,
minha velha, atravessemos juntos estas trevas, declarava o seu polegar subindo e
descendo ao longo do pescoço dela, atravessemos juntos estas trevas que só há
saída pelo fundo consoante nos informou o Pavia antes de abraçar o seu
comboio, só há saída pelo fundo e talvez que amparando-nos mutuamente lá
cheguemos, cegos de Brueghel a tactear, tu e eu, por este corredor cheio dos
medos da infância e dos lobos que povoam a insónia de ameaças.
Ah ah, exclamou a Dóri com um sorriso de triunfo, atrevidote, hã?
E apertou-me os testículos com as falanges em quebra-nozes até me fazer
gritar de dor.
A boîte devia estar no termo da sua viagem dessa noite: os únicos habitantes
para além do empregado zarolho que nos serviu um gin e um prato de plástico de
pipocas com maus modos evidentes, e da menina dos discos que lia o Tio
Patinhas na sua gaiola sonora, figura de caixa de música curvada sobre si própria
como um feto, eram dois homens sonolentos apoiados ao balcão, de narizes
equinos mergulhados em alcofas de bagaço, e que miraram a mulher terciária,
que rebolava à minha frente as ancas gigantescas, com a atenção distraída que se
confere a uma ruína sem interesse. As luzes do tecto, pulsando molemente ao
compasso de um tango, aclaravam o palco pindérico da minha execução:
cadeiras de ferro de esplanada de café, um televisor apagado numa prateleira
alta, cascas e pegadas circulares de copos no tampo das mesas: morreu na
miséria, explicavam os livros de leitura acerca dos poetas defuntos, barbudos
esqueléticos suspensos em atitudes pensativas, meditando provavelmente no que
empenhar a seguir, ou fabricando na cabeça alexandrinos preciosos. A Dóri que
regressava com a aproximação da madrugada a uma juventude de criada de
servir doirada pelas sólidas promessas matrimoniais de um primo soldado, pediu
uma sandes de paio com unto, de que ofereceu ao médico, numa guinada de
súbita delicadeza, a trincadela inaugural: mastigava de boca aberta como as
camionetas de cimento, e dançaram trocando meigamente pedaços de côdea
(Papa quido que tás maguinho), à laia de náufragos repartindo, fraternais, a
ração da jangada. O zarolho acotovelou os equinos do bagaço e ficaram-se os
três a observá-los numa estupefacção imóvel, siderados pelo abracadabrante
quadro de um adolescente envelhecido ao colo de uma baleia paleolítica de
grande juba frisada. Foda-se, pensou o médico aterrado, inalando o perfume
semelhante a gás de guerra de 14 que se soltava em rolos letais da nuca da
mulher, o que faria eu se estivesse no meu lugar?
São cinco horas da manhã e juro que não sinto a tua falta. A Dóri está lá dentro
a dormir de barriga para cima, de braços abertos crucificados no lençol, e a
dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança e recua ao ritmo da
respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a aguardente da
cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de guerra tornou
inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas, escutei-lhe as
confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de
um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à laia de um sudário
piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda arrancar os dejectos
endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores nascem lentamente do
escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e perceptível, mas não penso em
ti. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente,
oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a
paz da cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se
eu tivesse telefone e me telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o
auscultador à orelha numa expectativa de búzio: através das espiras de baquelite,
vindo de quilómetros de distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim
da noite, terias, juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu
silêncio, o piano amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo
princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha
família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o
cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de
obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria
de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer
coisa que me ajude a existir.
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